30.4.08

esquerda caviar e psicologia masculina



Repare-se bem no olhar de Vittorio de Sica. De queixo para trás e olho pesado a galar uma mulher que passa enquanto vai acompanhado com outra. Este fotograma de um documentário sobre o cineasta italiano resume algo do que se pode dizer sobre de Sica enquanto homem. O actor prematuro transformado com os anos em realizador mediático, estandarte (entre outros e por sorte, parece-me) do neo-realismo italiano, era a personificação da dolce vita à face da terra.

Mas salta-me uma pergunta: e se o olhar de Sica não for necessariamente interessado na mulher que passa mas apenas uma distracção defensiva inconsciente pois sabe que a bombshell que o acompanha está também por sua vez a ser galada pelo grupo de homens novos à sua frente?

[pausa]

A resposta: não, de Sica está mesmo interessado na mulher que passa porque afinal não é um grupo de homens novos mas apenas um homem novo no meio de mulheres e de outros ainda mais velhos do que ele e com ar de personagens dos seus neo-realismos.



Dandy, narciso, charmoso, bem-parecido, jogador compulsivo e apoiante do Partido Comunista Italiano. A seu favor, um verdadeiro caso da gauche-caviar. Comparativamente todos os outros, contemporâneos ou não, não passam de maus exemplos.

E uma torção de tronco destas não é para qualquer um.

27.4.08

www

World Wide Web. What Women Want.
No fundo, exactamente a mesma coisa.

o universo desconhecido

É amplamente sabido o quão perigoso pode ser para um homem a sua ingerência em assuntos do universo feminino. Por isso, sabendo que a sensatez vale ouro e as figuras-de-urso não pagam contas, faz-se o esforço para responder monossilabicamente; ou pelo menos evita-se mandar postas de pescada ao ar. Contudo, nem sempre é assim de fácil. Como ontem, por exemplo, que enquanto me mostravam umas unhas pintadas de um branco meio transparente me perguntavam se eu sabia que cor era aquela. Ora bem, eu sei que sou um canastrão mas não sou daltónico e por isso a resposta não seria obviamente o 'branco'. Dei ares de eloquência e arrisquei 'pérola' —não— seguidamente tentei 'marfim' —também não— e por último fui ainda mais piroso e soltei 'porcelana chinesa'. Tão-pouco acertei. A resposta correcta era 'nude attitude'.

26.4.08

duas italianas



Numa conversa telefónica o meu Pai comenta-me que para ele a Anna Magnani é a actriz mais brechtiana do cinema italiano. Prontamente acrescenta que também gosta muito da Silvana Mangano. Eu compreendo bem estas coisas: é que uma era tão boa actriz que inspirava respeito e a outra claramente inspirava respeito por ser tão boa.

25.4.08

pelas costas

'Platoon' de Oliver Stone 'Roma Citta Aperta' de Roberto Rossellini

Num, o momentum é previamente preparado: a velocidade das imagens torna-se mais lenta, a banda sonora intensifica o dramatismo da cena; tudo conduz ao auge (a Morte) enfatizando assim o martírio. No outro, sem música envolvente, é uma rajada seca, cruel, inesperada, meio disfarçada pelos gritos da multidão. Não há comparações, excepto que —em ambos— os tiros são pelas costas.

É pessimismo declarado, eu sei. Não resisti.

atmosfera

Até estava para transcrever um poema do Bukowski sobre a mulher e os telefonemas e que termina com um "I am just the poor son-of-a-bitch who has to pay the telephone bill" mas achei melhor não o fazer. Está um tempo porreiro, a primavera sente-se no ar, anda para aí tudo apaixonado e o camandro e eu não quero parecer a besta-quadrada do costume. Também pela mesma razão não vale a pena estar para aqui a dissertar sobre um livreco que ando a ler sobre o Neo-realismo Italiano e que por causa dele tive de ir a correr comprar o 'Roma Città Aperta' do Rossellini para ver a Anna Magnani levar um tiro pelas costas. Não, nada de pessimismo e obscuridade. A atmosfera não está para momentos depressivos.

23.4.08



Ou o 'Sexo e a Cidade'.

'o sexo e a cidade'

Se começou por ser um reflexo de um determinado grupo, retratando fielmente as idiossincrasias de um padrão social encaixado no Espaço & Tempo, com os anos tornou-se num case-study e posteriormente num exemplo a larga escala. A heterogeneidade física e psicológica das personagens é unida pela sua homogeneidade social —o estrato é o mesmo. E com base neste pressuposto é muito interessante ver como os diversos estratos sociais reagiram à adaptação da ficção. Em NY, há claramente nos grupos femininos uma inconsciente (ou não) tendência para a identificação com uma das quatro protagonistas; ou pelo menos uma aproximação.

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Assim, é dito que ‘Sex and the City’ funciona como uma ferramenta de estudo antropológico: primeiramente pela fidelidade do modelo na análise da realidade e posteriormente pela capacidade do próprio modelo ficcional em redefinir e moldar o entorno real, ou seja, um ciclo de uma realidade passada transformada em ficção que por sua vez influencia uma realidade futura. Por isso, apesar do hiato entre ambos a vários níveis, 'Sex and the City' está para a televisão nos anos noventa como por exemplo o neo-realismo italiano está para o cinema no período do pós-guerra. São produtos de estudo de uma apurada observação e crítica social e que nos chegam, enquanto espectadores, na forma de entretenimento.
Seja heavy ou light.

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Não é Malinowski, dirão os puristas, mas para os dias de hoje serve.

20.4.08

a escola de barbizon

fotograma de 'Samurai II, Duel at Ichijoji Temple', de Hiroshi Inagakifotograma de 'Samurai II, Duel at Ichijoji Temple', de Hiroshi Inagaki

No cinema de Hiroshi Inagaki.

as pessoas, os cães, os cães e as pessoas

Escrevo estas linhas do banco de jardim de Tompkins Square Park, ao lado de casa, e agradeço as vantagens de uma cidade wireless. Os primeiros dias de Primavera trouxeram para a rua todos os nova-iorquinos. O parque está sobrelotado com pessoas dos mais variados géneros e cães das mais absurdas raças. Passam por mim personagens características da zona, como o porto-riquenho da bicicleta de vinte buzinas, o bêbado da rasta até ao joelho e a velhota dos oito cães. Os miúdos revivalistas dos anos oitenta ocupam uns bancos ao lado do meu e no seu rádio de pilhas tocam êxitos dos Duran Duran, Spandau Ballet, Billy Idol e das Banshees. Trazemos óculos iguais, reparo, esses clássicos wayfarer negros; os deles novos e os meus dos tempos de adolescente quando eles ainda usavam fraldas. Na esquina dois tipos tocam saxofone e um bulldog com uma gravata ao pescoço (ou naquilo que parece ser o pescoço de um cão que desde o século XIX não tem pescoço) recolhe dinheiro aos ouvintes numa cesta presa ao focinho. As árvores estão em flor e essas coisas todas que há para dizer e tal. E sim senhora, tem tudo muita piada, mas agora vou para casa porque as alergias não me deixam parar de espirrar.

19.4.08

those ghostly traces, photographs

Copyright Anthony Suau

18.4.08

harlem love

Ontem, na minha espelunca favorita do Harlem, entre fumo e risos Dee Dee Michels cantava qualquer coisa acerca do 'amor'. Não sei bem o quê. Como não acredito peva, tentei não prestar muita atenção.

**

As horas de almoço passadas diariamente na escadaria do Federal Hall, ao lado da estátua do George Washington, farão com que a médio prazo apareça aos bocados em todos os álbuns de fotografias japoneses. Uma perna aparecerá atrás do casal Yashimoto, outra da filha dos Fuschida, um olhar descontraído para as pernas da vizinha do lado nas dos Ichimonji e por último, para embaraço total, de palito ao canto da boca na chapa tirada pelo senhor Makiguchi. Uma vergonha; mas mesmo assim uma sorte que as provas fiquem pelo Japão.

17.4.08

o cinema imita a vida

'Viaggio in Italia' (1954), de Roberto Rossellini

"We will always be able to make films. When I saw 'Viaggio in Italia', I knew you could shoot a two-hour film with a couple in an automobile. I've never done that, but I've always kept it as security."

JLG em 'The Future(s) of Film, Three Interviews, 2000/01'.

16.4.08

o seu duplo perene

BB

nada é mais volátil

do que promessas entre amantes.
Ou talvez apenas o algodão-doce.

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Depois do que vimos na trilogia Samurai de Hiroshi Inagaki e na extensa colaboração com Kurosawa, chamar 'outro cão raivoso' a Mifune é insultuoso. Toshiro Mifune é o cão raivoso. Prontamente seguido de Klaus Kinski, o número dois universal —embora alguns achem, o que até é legítimo, que Kinski vem em primeiro. Enfim, opiniões.

outros cães raivosos

Toshiro Mifune

o exercício

"Tire o texto e repare no que fica. Não há nada mais na TV. Quando vejo televisão faço-o sem som. Sem som vêem-se os gestos, vêem-se as rotinas das jornalistas e dos apresentadores, vê-se uma mulher que não mostra as pernas, move os lábios, faz a mesma coisa repetidamente e ocasionalmente é interrompida pela chamada reportagem no local. Ela será a mesma amanhã, apenas o texto será diferente."

Godard, numa entrevista em 2000, na qual mais à frente se pode ler que nunca compreendeu por que 'Le Mépris' é tão apreciado. Eu também não, mas arrisco que talvez o seja pelo 'Brevemente neste ecrã, a mulher, o homem, Itália, o cinema —com Brigitte Bardot e Michel Piccoli— o Alfa-Romeo, o musical, a estátua grega, o revólver —o novo filme tradicional de Jean-Luc Godard— a chapada, o quarto, o beijo, a casa-de-banho —com Jack Palance, Georgia Moll e Fritz Lang— o louco, a estrela, o ancião, o mar —baseado num romance de Alberto Moravia— a ternura, a vingança, as carícias, o sofrimento —filmado com toda a magia de FranceScope e Technicolor— a escada, o passeio, o livro, o barco, uma trágica história de amor num cenário maravilhoso, as disputas, o sol, a traição, a morte, uma maravilhosa história de amor num cenário trágico, o amor, a obscuridade, os mal-entendidos, a beleza fatal, fatal.'

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A Casa, acrescenta o jmac. Sim, sem dúvida a casa.

14.4.08

toque-se o 'requiem'

Morreu o Amor.

13.4.08

talvez por soar a algo exótico

Dizem-me que de tudo, a parte da condessa eslava é a mais inverosímil. Talvez. Certo é que às vezes a verdade é ela própria a mais inverosímil também. Sobretudo se parecer um anacronismo.

12.4.08

o seu duplo perene

Grace Kelly em 'Rear Window'

11.4.08

a midnight valium for a good night sleep

Como Flitcraft, cuja história Hammett conta em 'The Maltese Falcon', também ele um dia quis largar tudo e fugir. Deixou a mulher e o filho com lábio leporino, a sogra surda, os cães, as criadas e os pretos; as armas de caça e as camisas de caqui. Fugiu sem saber do quê, talvez do tamanho do Sol, que ao princípio tanto o seduziu e que acabou por lhe ser tão insuportável como uma amante exigente e gasta. Juntou dois trapos ao cair da noite e saiu a pé, mato fora a rasgar as canelas, avistando ao longe fogueiras e reconhecendo ecos de cânticos tribais. Pensou nas negras no pavilhão de caça, longe dos olhares familiares e dos remorsos conjugais. Às duas e três, de corpos suados enrolados no seu e em como apenas nesses momentos encontrou o que pensou ser felicidade. Enganou-se, talvez, e o vazio fê-lo repetir o acto até à exaustão pois em África o calor e o sexo andam sempre de mãos dadas. Rumou para longe; pensou em Marselha. Nos bares do porto, na frescura da beira-mar, nas americanas, nas viúvas, nos gigolôs, nos paneleiros, nas esplanadas, no Pastis com gelo e no bas-fond povoado pela miséria dos intelectuais de um Maio revoltado lado a lado com a dos marinheiros.

Acabou em Nova Iorque, décadas depois, numas águas furtadas na Village, vivendo como professor de esgrima, amante de uma condessa eslava e contando a sua história a tipos como eu que um dia também pensaram em fugir.

10.4.08

charlton heston (04.10.1924 - 05.04.2008)

our man in vienna

"In Italy, for thirty years under the Borgias, they had warfare, terror, murder, bloodshed — and they produced Michelangelo, Leonardo da Vinci and the Renaissance. In Switzerland, they had brotherly love, they had five hundred years of democracy and peace, and what did that produce? The cuckoo clock."

Orson Wells como Harry Lime, o Terceiro Homem, num filme de Carol Reed com guião de Graham Greene.

9.4.08

our man in paris

Dexter Gordon

Talvez ainda dos tempos daquela Paris das entre-guerras, onde os artistas se misturavam com as putas, as aristocratas fodiam com os negros, os alienados se afundavam nas casas de ópio chinesas e os escritores norte-americanos viviam embriagados pela vie maudite; da Paris onde o jazz à noite renascia o homem primitivo e sexual que durante o dia vivia camuflado na moralité de la bourgeoisie; da Paris onde todos passavam pela Rive Gauche querendo mais do que o dinheiro podia comprar. Talvez ainda dos tempos daquela Paris que no dia da vitória dos Aliados testemunhou nas suas ruas o amor entre desconhecidos, intoxicados pela felicidade e pela joie-de-vivre, e onde mulheres se entregaram a homens em becos húmidos em troca de beijos mal-pagos e gemidos apressados. Talvez ainda dos tempos daquela Paris, poderia pensar. Mas não, 'Our Man in Paris' foi gravado em 1963.

8.4.08

dos testemunhos

As histórias do 11 de Setembro, com o pânico, o horror, o desespero e por fim a coragem e a solidariedade como protagonistas, ganham outra dimensão quando contadas na primeira pessoa. Num sábado à tarde, em frente àquilo que um dia foi o World Trade Center.

7.4.08

'Ninth Floor', Copyright Jessica DimmockAnna, a go-go dancer', Copyright Jessica Dimmock

Desde que um livro seu me caiu nas mãos que tem sido uma das interessantes descobertas locais. Refiro-me a Jessica Dimmock. Foto-reportagem clássica, como convém, sem o carácter mediático do fotojornalismo ou o cuidado exigido à Fine Art Photography. O trabalho de Dimmock é como os próprios assuntos que aborda: há sujidade, movimento, abandono, escuridão e um rasgo de pessimismo, esse legado tão característico da escola Arbusiana.

E se notamos, pelo tema, esta óbvia referência clássica norte-americana, também as contemporâneas são perceptíveis: de James Nachtwey a Mary Ellen Mark, passando por gurus do género que Dimmock tende a explorar como Nan Goldin ou Boris Mikhailov. Na sua (até agora) breve carreira o elemento comum (ou a tendência do género) é o interesse em faixas marginais da sociedade — dos junkies de 'Ninth Floor' aos travestis nepaleses. Nos trabalhos anteriores compreende-se que Dimmock ainda buscava o seu tema de fundo, focando-se (ou perdendo-se) em detalhes que resultam como dados supérfluos à narrativa visual.

Paralelamente ao seu fascínio pela marginalidade há uma intenção de registo pelos ritos transformativos dos seus intervenientes, seja através da representação ou mesmo da autodestruição. E uma vez mais podemos claramente falar de referências, como a de Cindy Sherman em 'Anna, a go-go dancer'.

5.4.08

dos pactos-de-sangue

Lembro-me de uma noite dos tempos de liceu em que fiz um pacto-de-sangue a jurar amor eterno. Quinze dias depois acabou-se o namoro e foi cada um para seu lado. Eu com um par-de-cornos, ela com o professor de Geografia.

uma de cada vez

Há uns quinze anos uma revista do Expresso publicava um inquérito informal, antecedido por um artigo acerca da vida sexual de personagens históricas, sobre "o número de mulheres que passaram pela sua cama". Alguém, não me lembro quem, respondeu que pela sua, passara uma. Resposta igualmente elegante foi a de Miguel Sousa Tavares, creio que ele (mas não estou certo), que respondeu simplesmente "uma de cada vez."

4.4.08

le bonheur

'Le Bonheur', de Agnès Varda

Como se acreditasse nisso.

a midnight valium for a good night sleep

Acordo demasiadas horas antes de o dia começar; sem saber se pelo sabor metálico que os antibióticos me deixam na boca ou se pelo barulho da chuva que teima em rachar a janela. Não me atrevo a acender a luz e conto carneiros que saltam cercas de madeira branca. Seis horas de diferença para Barcelona, penso. Agarro no telefone. E então a vida repete um filme que repete aquilo que um dia foi também uma vida.

Avant la haine, avant les coups
De sifflet ou de fouet
Avant la peine et le dégout.

3.4.08

bactérias e outras que tais

Por vezes os nossos maiores inimigos estão dentro de nós. Refiro-me somente aos microrganismos.
Pois nem vale a pena trazer para a conversa as chamadas deficiências de carácter.

those ghostly traces, photographs

Copyright Stephen Shore, Mount Blue Shopping CenterFarmington Maine 7 30 1974

as mulheres

Essa requintada partida. Da Evolução aos homens à Humanidade.

a cidade, os riscos e o neo-marxismo

"A cidade escreve-se a ela própria nas suas paredes e ruas. Mas essa escrita nunca se completa. O livro nunca termina e contém inúmeras páginas em branco ou rasgadas. Não é mais do que um rascunho; será mais uma colecção de riscos do que escrita."

A poesia em 'La Révolution Urbaine' de Henri Lefebvre; um, segundo lhe chamam, neo-marxista.

1.4.08

those ghostly traces, photographs

© George Albert Newton Smith, 1953

no seu melhor

Igualmente bom ao da resposta a JSMelo, é o post sobre 'A Lei do Divórcio':
"Por outro lado, não me parece prudente que se suponha que o casamento se baseia no «afecto». O casamento baseia-se no afecto 1) há pouco mais de um século 2) durante uns anos." Ou também: "Ainda hoje o «amor» não é um requisito: todos conhecemos homens e mulheres que se casaram por outras razões". E entre as referidas destaco a sublime "vingança face a terceiros".

Pedro Mexia, claro está.