30.10.08

i own the night

'King of New York', (1990), de Abel Ferrara

'King of New York', (1990), neo-noir de Abel Ferrara, impressionou-me tanto por aspectos tão variados — do under-acting de Christopher Walken à raiva de David Caruso; ou do argumento robin hoodesco de Nicholas St. John à fotografia crua e fria de Bojan Bazelli — que tive de vê-lo duas vezes seguidas no espaço de 48 horas. E há ainda outro aspecto muito importante para esta súbita obsessão: a maneira como Abel Ferrara transporta a geografia urbana e nocturna para o processo da narrativa: a cidade não é apenas o cenário, ou o background da acção, mas assume-se como outro protagonista, contando-nos mais do que aquilo que aparentemente vemos e ouvimos; através da exposição de algumas características sociais (e por conseguinte físicas) muito particulares remetentes a uma Nova Iorque que praticamente já não existe. Neste contexto da morte da cidade lêem-se nas entrelinhas duas abordagens distintas mas inseparáveis: o fim de uma moralidade aparente e o desaparecimento da Americana, o suporte quasi-ideológico de uma nação. Talvez um elemento importante seja pensar que Ferrara nasceu no Bronx e a paisagem de decadência urbana, derivada de múltiplos factores sociais, faz parte da sua memória individual.

Também no que toca à memória — e agora referindo-me à colectiva — é a Nova Iorque de Ferrara que (ainda) pulula no imaginário global. A dele e a de Paul Schrader, de Martin Scorsese, de Adrian Lyne ou até a do novato James Gray. O que é compreensível, pois uma cidade que nunca dorme que seja asséptica, impoluta e cândida não interessa a ninguém. Ou não interessa, pelo menos, a mim.

29.10.08

da hiper-modernidade

Dizem-me que menciono muito por aqui esta coisa da hiper-modernidade. Pois bem, resta-me dizer que depois de ler 'Les Temps Hypermodernes' do Lipovetsky e de em seguida vir viver para esta cidade é impossível não o fazer. Mais do que em qualquer outro Lugar, a América é o palco do hiper-consumismo, do hedonismo forçado, da liberdade condicionada, do individualismo emocional, da misantropia social.

Falo, portanto, com conhecimento de causa.
Por vezes como testemunha, por vezes como protagonista.

o grande lebowski (2)

Em 'Big Lebowski', os irmãos Cohen fazem em 100 minutos de cinema o que Eric Bogosian fez em palco ou Lee Friedlander fez com a fotografia: cobrir o largo espectro da diversidade social pós-moderna norte-americana. Mas no caso dos Cohen, claro está, interessaram-lhes apenas os extremos caricaturais.

o grande lebowski

'The Big Lebowski'

'Big Lebowski' (1998), dos Cohen Brothers, é um dos filmes com mais citações e com um maior reflexo posterior na sociedade. Para além dos Lebowski Fests e dos Dude Fests, por toda a parte é frequente encontrar T-shirts, posters e autocolantes com frases da sua mais que heterogénea galeria de personagens (por actores como Jeff Bridges, John Goodman, Steve Buscemi, Philip Seymour-Hoffman, John Tuturro, Peter Stormare). Porém, há uma que parece escapar à febre deste primeiro filme de culto da 'Internet Age' como lhe chamou o crítico Steve Palopoli: Ben Gazzara como Jack Treehorn, o produtor pornográfico de Malibu. Gazzara na realidade mais parece uma versão envelhecida de Cosmo Vitelli, ele próprio como o "empresário da noite" do 'The Killing of a Chinese Bookie' do Cassavetes — o que num filme que joga propositadamente com pastiches, adaptações, referências (e reverências) a outros momentos da história do cinema faz com que isso seja muito natural. Jack Treehorn, o produtor, solta o chavão do meio profissional com a expressão: People tend to forget, but the brain is the biggest erogenous zone of them all.

Nunca vi nenhuma T-Shirt com isto.

28.10.08

o seu duplo perene

Zoë Lund, em 'Ms 45'de Abel Ferrara, USA 1981

contida mas ainda assim distante

Penso que uma recusa, contida mas ainda assim distante,
Afastará de todo o sempre galã errante.

Elmire, a mulher do pio Orgon em 'Tartuffe', explica ao marido um dos (muitos) métodos femininos de anti-avanços masculinos. Acrescento que a desastrosa tradução (que fiel a Molière deverá rimar) é da minha inteira responsabilidade: não tão baseada no que li, mas sim no que vivi.

27.10.08

tartuffe, o eterno gajo do lado

Tartuffe, le hypocrite de Molière, é o parasita, impostor, oportunista e falso pregador moral que vive da bondade, da ignorância e do zelo alheios. Tartuffe, le hypocrite, estará sempre no meio de nós.

26.10.08

um profeta

Sendo as suas personagens mais famosas homens hipocondríacos e misantropos, será naturalmente justo dizer que Molière foi um profeta da hiper-modernidade. Antever a prozac nation merece todo o mérito que lhe possamos reconhecer. Especialmente com três séculos de antecedência.

24.10.08

a little bit of color

'Point Blank', (1967)

23.10.08

a história interminável

Das mulheres que olham para os homens há dois grupos: as que olham para os homens porque gostam de ver homens e as que olham para os homens apenas para ver se os homens olham para elas.

**
O que talvez grande parte deste último grupo não saiba é que dentro dos homens que olham para as mulheres há dois grupos também: os que olham para todas as mulheres e se fixam posteriormente apenas nas giras; e os que olham para todas as mulheres e que para além de o fazerem com as giras também se fixam nas feias a lamentarem-se interiormente por elas não serem como as giras.

**
Dentro do grupo de mulheres (e não são poucas) que olham para os homens apenas para ver se os homens olham para elas e que sabem que dentro dos homens que olham para todas as mulheres há dois grupos, há ainda dois subgrupos: as que acham sempre que pertencem ao grupo em que os homens olham para elas e se fixam por serem giras; e as que sabem que os homens também se fixam nas feias e acreditam sempre que as feias não são elas mas sim a amiga do lado.

**
Dos homens que sabem que há mulheres que sabem que eles olham para elas por serem giras ou que olham por serem feias, há também dois subgrupos: os que olham com base em tudo o previamente explicado; e os que fazem exactamente tudo ao contrário só para confundir.

a midnight valium for a good night sleep

Pergunto-me, quando a altura chegar, que nome direi no meu leito de morte? Será o teu? Ou outro qualquer que os anos, a vida, o cansaço, as insónias e mil e uma aventuras me fizeram esquecer?

O teu, seguramente.

dica para os comilões; um três-em-um no NoHo

Onde saborear comida crioula, beber Pabst Blue Ribbon por $2.99 e assistir à Music and Film NY Marathon ao vivo numa cave em Nova Iorque? O Ace of Clubs, em Great Jones Street no NoHo, é a resposta. Fica o aplauso para os We Are Standard, de Bilbao. Ao vivo.

22.10.08

bem vistas as coisas,

um blogue iconoclasta dá menos nas vistas no ecrã do local de trabalho.

a vizinhança

Na pizaria da esquina da Metropolitan Ave, em Williamsburg, está o melhor conjunto de wiseguys da cidade. Durante o dia, nos seus fatos de treino, camisolas de alças ou de fato e gravatas coloridas, reúnem-se à porta a ver quem passa; sobretudo as broads (género social que a Wikipédia descreve como a woman lesser class then a lady but higher class then a bitch) do bairro. Se está de chuva, fogem lá para dentro e alinham-se no balcão forrado a fórmica branca. As mesas não têm toalhas aos quadrados encarnados nem tão pouco há cartazes de artistas esquecidos ou fotografias autografadas e emolduradas pelas paredes. Esses detalhes ficam para os restaurantes turísticos de Little Italy; aqui a decoração do espaço não interessa muito, o importante é ter perto as fotografias de família ao lado da do santo patrono que dá o nome à casa: a da filha o ano passado, a da mãe pelos anos oitenta e sendo o dono viúvo, está naturalmente a foto da mulher há quinze anos atrás. Se em vez de viúvo ele tivesse sido cabrão, a foto da mulher não existiria mas estaria no seu lugar a de uma tia-avó afastada. Estando a Santa Trindade exposta, o dono tende a torcer o nariz para quem se focar mais de quatro segundos nas imagens. Uma vez cometi o erro de dizer-lhe que a filha era igualzinha à mãe e ele fingiu nem ouvir enquanto roía o palito. Talvez o que ele gostasse de ter ouvido é que a filha é igualzinha a ele. A paternidade é um valor moral e uma questão de honra; sobretudo à frente dos comparsas. Compreendendo tal, foi o que fiz em seguida, roendo também o meu palito acrescentei um and to you too. Há uma quarta foto, longe das outras três e do postal do santo, que mostra o dono e cinco amigos com armas automáticas nas mãos. Sendo a posse legal de armas de fogo o desporto nacional deste país, tal foto não surpreende muito. Mesmo estando os ditos senhores com aquelas fatiotas.

Não vou lá muito.

21.10.08

por vezes

Por vezes, tal como em hora-de-ponta há quebras de tensão, também em momentos de ponta há quebras de tesão.

40 minutos

Hoje o metro L parou. Entre as estações da Segunda Avenida e de Union Square. Parou por 40 minutos, no meio de um túnel escuro. Cheio, à pinha, em hora-de-ponta; com miúdos a caminho da NYU, com white-collars para a conexão de Wall Street, com hipsters a dormir em pé, com mulheres latinas, com mulheres maquilhadas, com ucranianos e comigo no meio de todos a ler o ensaio sobre o 'Homem em Revolta', comprado ontem por $3.99, do Camus. Quando uma senhora teve a primeira quebra de tensão, ia eu na passagem "evil and virtue are mere chance or caprice", ainda na Introdução. Depois lembrei-me da máxima de S. Tomás de Aquino sobre a Virtude também servir maus propósitos, com Acaso ou sem ele, e continuei a leitura confuso. Os minutos passavam devagar e a palavra absurdo pulava em cada linha. Quando outra senhora teve a segunda quebra de tensão da manhã deixei o livro de lado e ajudei-a a sentar-se, num lugar cedido por um halterofilista que devia ter levantado o cu trinta minutos antes. Uns passageiros discutiam ao fundo da carruagem por pisadelas e afins; outros olhavam para o tecto para não gritarem e todos estavam com vontade de andar aos pontapés a tudo. O metro retomou a marcha e eu, um homem em revolta pela perda de tempo, pus o livro de lado ao chegar à rua. Chega de absurdos existencialistas por uma semana, pensei, e fui à pressa comprar o diário sumo de cenoura e beterraba ao deli da esquina com a Dezoito.

Foi aí que fui atropelado. Mas recompus-me num ápice e nem olhei para trás. Um chinês fumador numa bicicleta não faz muita mossa.

20.10.08

o sensual fruto

15.10.08

o bizantino que há em mim

Dez posts seguidos sem uma única imagem.
Preocupado, pergunto-me: minimalista, preguiçoso ou iconoclasta?

14.10.08

a crise financeira e um eufemismo

Depois de por aqui ter explicado há uns largos meses como a crise financeira afectou as relações na América, escrevo agora como a crise financeira me afectou a mim. É simples: não afectou. Quem nada material tem, nada material tem a perder. Nem casa nem prestação; nem carro nem prestação; nem ecrã de plasma nem prestação; nem barco nem prestação e nem cartão de crédito nem prestação. Assim, com tantos nem isto nem aquilo, vejo que em crise ando eu há muito tempo. Mas mesmo assim prefiro chamar-lhe liberdade.

13.10.08

Columbus Day

Num feriado nacional como o de hoje a segurança por toda a cidade é redobrada. Nos corredores do metro e nas praças públicas vêem-se elementos das brigadas especiais, com capacetes e armas automáticas, que normalmente não estão lá. Num feriado nacional como o de hoje, as probabilidades de um ataque terrorista sobem consideravelmente.

"Man was born free, and he is everywhere in chains."

a escola de mulheres (2)

"Man was born free, and he is everywhere in chains."

10.10.08

a escola de mulheres

Depois de ontem presenciarem a minha chegada a seguir ao almoço com uma caixa de sapatos de mulher —e de me terem feito mostrá-los e revelar-lhes que era um presente para essa noite— foi com espanto que hoje me viram chegar de manhã com a mesma caixa. Se as minhas colegas me conhecessem, e tal não acontece, poderiam até pensar que o momento dera para o torto, coisa comum, e que os sapatos voltariam para a loja e o dinheiro para o meu bolso. Por acaso não foi o que aconteceu. Contei-lhes que o pé não coube. Não coube? —perguntaram em coro— como assim? Não sabias o número? Sim, sabia; e expliquei-lhes que o soube através de uma discreta manobra mas que mesmo assim, com o número certo, o pé não coube. Pediram para ver os sapatos de novo. Então, segundo o que dificilmente apurei, as mulheres —ao contrário de um homem— nunca calçam o mesmo número. A biqueira, a inclinação do salto, se são sapatos ou botas, se são de pele ou de tecido, o fabricante e inclusivamente a altura do mês faz com que o número varie. Para mim, que sempre calcei o 45 e só conheço all-stars, chuteiras de râguebi e um par de sapatos ingleses, foi a descoberta de um mundo novo. Depois agradeci a lição e senti-me, uma vez mais, como o bronco do Arnolphe da 'Escola de Mulheres' do Molière.

Apenas quanto a sapatos, acrescento, pois de pés, e até pela quantidade de vezes que já levei com eles, percebo um bocado mais.

se o conto de fadas fosse nos dias de hoje,

a Cinderela estaria bem fodida.

o homem hipermoderno, pela manhã

O sumo de cenoura numa mão, o livrinho do Rousseau na outra e a caixa de sapatos de salto muito, muito alto, debaixo do braço para trocar porque afinal estão-lhe apertados. Eu, nada mais do que outra sombra na multidão da 5a Avenida.

"Man was born free, and he is everywhere in chains."

o direito à conquista não tem outra base do que a lei do mais forte

Rousseau sobre a diária batalha campal para entrar no metro em hora de ponta.
Rousseau sobre as regras do l'engagement amoureux no Meatpacking District.
Rousseau sobre as bofetadas que os filhos levam por não comerem a sopa.

9.10.08

man was born free, and he is everywhere in chains

Jean-Jacques Rousseau, em 'O Contrato Social' no século XVIII, sobre a hipermodernidade no século XXI. O homem nasceu livre e em toda a parte está aprisionado acorrentado. Nos dias de hoje Lipovetsky bem tenta, mas ainda não superou a metáfora do francês.

oshima retro

'O Imperio dos Sentidos', de Nagisa Oshima

Uns valem a pena. Outros nem por isso.

8.10.08

da psicologia da pequena grande besta

Recordo-me de há uns tempos ter lido umas declarações do Antonioni onde este explicava que o poder dado às suas personagens femininas, (leia-se Monica Vitti), tinha a ver com o facto de ter crescido e passado uma considerável parte da sua vida rodeado de mulheres num universo familiar —a Mãe, as tias, as primas e as criadas. Eu próprio ao ler isto, (e agora pelas presentes condições de trabalho: eu e oito mulheres), relembrei-me de que sou o único homem de um dos lados da família na minha geração. Curiosidade que fez com que ano após ano, Verão após Verão, desempenhasse inconscientemente as funções de protector das minhas sete primas —trocando os pneus das bicicletas, refazendo o baloiço de corda da árvore ou oferecendo pancada aos outros miúdos que se metiam com elas.

Talvez por isto de ter sido o galo da capoeira num momento crucial da formação de carácter, uma década mais tarde uma namorada (psicóloga) teorizava sobre a envolvente emocional da minha infância. Perguntava-se (e a mim) se teria sido isso o que provocou em mim aquilo que ela cunhou de estado de machista. Eu, que nunca (depende como acordo) concordei com o termo, deixei-a sempre teorizar o que quis. É que por essa altura já tinha aprendido a lição: se queres viver em paz, nunca contraries uma mulher.

7.10.08

algo inédito

Há uma semana que pus brevemente de lado a liberdade de horários da vida de freelancer por uma colaboração especial de seis semanas com um grupo de Union Square. A escala do novo espaço de trabalho é simpática e familiar. Somos apenas nove pessoas. Eu e oito mulheres.

6.10.08

o que conta

Escrevi para aqui um post sobre a Sarah Palin que não publiquei pois nada disso interessa tanto como o facto de em Nova Iorque haver motivos para sorrir. Entre muitos outros 1) a subida do dólar e 2) o New York Film Festival. Quanto à milf, cada um pense o que quiser.

4.10.08

the fall

O cartaz na loja de roupa anunciava que the Fall arrived. Sim, é verdade que o Outono chegou, mas a «queda», essa, já por cá andava.

3.10.08



'The Lament for Icarus', por Herbert James Draper.

mea culpa

No fim vejo que a culpa foi apenas minha, que não poderia nunca exigir-lhe o que eu esperava pois tal não está ao alcance de todos. E desta forma constato que não sou mais do que Ícaro; que embriagado pela beleza do meu voo e na tentativa de ir mais além acabo imprudentemente por deixar derreter as asas de cera. Resta-me não desistir e reconstrui-las. Talvez, ao contrário do desafortunado grego, chegue ao sol numa fria tarde de Inverno.

Ou então é caso para dizer que nunca aprendo.