28.6.09

m'sieur

A rua deserta e silenciosa, devido à hora avançada da noite, faz com que o feixe de luz saído da porta que guarda ganhe um protagonismo inesperado e místico, como um pórtico para o desconhecido visto num «série B» dos anos 50. Pode ler-se a um canto da fachada, em pequenas letras de néon encarnado, o nome do bar acompanhado das palavras Strip Club. Noite após noite a sua figura melancólica revela-se encostada ao umbral lacado, impedindo-se assim de tombar sobre si mesma. Com a proximidade dos meus passos a mancha em contraluz vai-se tornando perceptível: uma fisionomia madura, vincada pelas rugas e consequentemente uma expressão absorta e plana; desinteressada. Atrás de si percebe-se um pequeno lobby decorado com espelhos e metais dourados, antecâmara da acção cuja música trespassa remotamente para o exterior. Não há gente, não há movimento; apenas este porteiro nocturno de um local vazio e esquecido. Caminho devagar, silencioso e concentro-me na sua postura. Pela idade aparente já viu muito e de tudo, seguramente. Há algo nele que acusa cansaço. Demasiadas noites, demasiados copos, demasiados maços de tabaco, demasiada solidão. Encostado, olha o chão distraidamente enquanto fuma. Não dá por mim até dois metros da porta, momento em que levanta a cabeça. Cumprimento-o com um aceno e sigo rua fora o caminho de casa, ficando sempre a pensar que tenho unicamente duas opções para enquadrá-lo: como uma personagem solitária do Realismo Poético de Jean Renoir, ou como uma possível projecção do meu próprio futuro. Cauteloso, fico-me somente pela primeira.

a midnight valium for a good night's sleep

Meio adormecido, imaginei que tinham passado vinte anos até voltar a ver-te. O momento do suposto reencontro perturbou-me. Não por estares mais velha — nem isso parecias estar — e reflectires assim o meu próprio envelhecimento, mas por ver que tinham passado vinte anos sem ti. Vinte anos em que a vida me tinha privado de algum sentido dado pela ilusão —o pouco que como mortais nos resta— daquilo que comummente conhecemos como «estabilidade». Agora, desperto e lúcido, compreendo: afinal não foi um sonho pois tu desististe, desapareceste e já não estás; afinal «estabilidade» é coisa que tão-pouco existe. Ou se sim, nunca a longo-prazo.

23.6.09

das mulheres de trinta

São interessantes as afinidades entre Maria, de 'Play it as it Lays' de Joan Didion, e Marta, de 'Transa Atlântica' de Mónica Marques. Embora personagens pertencentes a universos distintos — geográficos, geracionais, culturais — as narrativas apanham ambas numa mesma faixa etária: a casa dos 30. Nesse específico período etático de uma mulher, que vai do golpe de misericórdia final na inocência ao primeiro vislumbre da crueldade do envelhecimento, a maioria já amou, deixou, sofreu, fodeu ou gritou. Umas, muito de tudo; outras, um pouco mais do que nada. Algumas foram ainda mães, sozinhas pelo caminho, sobretudo, ou muitas vezes nele tão mal acompanhadas. 'Maria' e 'Marta', cada uma à sua maneira, possuem gravado o código sentimental de um percurso universal e contemporâneo; feminino.

A uma aparente independência de costumes & vícios, legado da Modernidade, subsiste da mesma forma uma prisão consequente da imutabilidade da condição humana: a necessidade de afecto. Há também memórias — há sempre memórias — que despoletam no Presente receios e confusões; ou erros e omissões. As mulheres de trinta já sabem o que querem e muitas vezes também já o tiveram para consequentemente o perderem. Ou assim o crêem. Por culpa de incertezas, suas e de outrem, de abandonos, de desinteresses ou até das sogras, como algumas o fazem notar.

Em resumo e apesar de tudo, as mulheres de 30 ainda acreditam. Mas só mais uma vez.

16.6.09



Charlotte Rampling —como Jacqueline Bisset, Jessica Lange, Angie Dickinson, Sophia Loren e muitas outras— é a prova de que uma mulher pode ser atractiva e desejável em quase todas as fases da sua vida. De barely legal a housewife, de milf a mature.

a blogosfera amputada

O Estado Civil terminou no princípio deste ano. Como de certa forma a ele se deveu o meu interesse em entrar e mais tarde em participar na blogosfera, pelo seu exemplo de conduta e pela atracção dos seus conteúdos intimistas e reflectivos, isto faz com que em parte me sinta uma estranha espécie de órfão. Sem o Estado Civil —que é o mesmo que dizer sem o Pedro Mexia— o quotidiano da blogosfera já não poderia ser o que foi: numa assentada perdeu esprit & reflexão. Mas embora «órfãos» somos igualmente «adultos» e mentalizamo-nos assim a viver com isso. Como um ferido de guerra vítima de uma amputação.

somehow still related with 'lust'

Quando descobri o trabalho fotográfico de Dash Snow, o enfant-terrible da underground-art nova-iorquina, numa livraria de esquina da Village, balizei-o num campo conceptual entre a exploração de uma familiaridade trágica e marginal, de Nan Goldin, a exposição sexual fria e provocadora de Terry Richardson e o registo da decadência física (e moral) de Boris Mikhailov. Por essa altura os trabalhos fotográficos do (depois) cineasta Larry Clark — 'Tulsa' e 'Teenage Lust' — ainda me eram desconhecidos. Quando deixaram de o ser, notei que são esses mesmos a maior influência de fundo no body-of-work de Snow. O que demonstra que já nem na irreverência há muita originalidade.

15.6.09

mature lust

Charlotte Rampling, por Juergen Teller

average lust

You wanna know something?
You're not in love. You're in lust.

Fox (Christopher Walken) para X (Willem Dafoe) quando este último lhe diz que vai fugir com Sandii (Asia Argento) por estar apaixonado por ela. Há muita verdade, naquela simples contra-resposta de Fox. Em 'New Rose Hotel' (1998), de Abel Ferrara. Para prevenir muito boa gente de futuras confusões.

teenage lust

Pelo facto de há alguns dias atrás ter feito outra alusão à obra do algo andrógino (no estilo) Bret Easton Ellis, acrescento agora que se há imagens que ilustram de uma forma precisa o contexto psico-social do seu 'Less than Zero', (1987), essas serão seguramente as do já por aqui comentado álbum 'Teenage Lust', de Larry Clark. Como se nao bastasse 'Less than Zero' ser também sobre uma certa luxúria na adolescência —uma realidade física— há uma outra realidade —podemos chamar-lhe moral— que enfatiza a co-relação entre as duas obras. A fotografia 'They met a girl on acid in Bryant Park at 6 am and took her home to fuck her', de Clark, é disso um bom exemplo. Não pelo sexo explícito ou a aparente violência do gangbang involuntário nela contido, mas pela utilização do corpo de outrem para um interesse pessoal e unilateral, descartável e instantâneo. Como no livro de Ellis, uns (corpos) servem a outros apenas nessa perspectiva.

12.6.09

la génération perdue

A Lost Generation e os seus estilhaços têm hoje um espectro mais alargado do que o inicialmente literário nas sucessivas correntes conceptuais. Surge agora como um movimento elíptico sentido novamente na vida e no corpo, longe do asilo teórico das páginas impressas, cujos autores demonstram uma estranha e incómoda actualidade. Não somos assim os filhos de uma geração perdida, legado abstracto de outros anteriores a nós, mas uma nova geração perdida. Também percorremos o mundo e da mesma forma nos decepcionamos. A festa é a máscara que disfarça a desilusão.

8.6.09

duas fotos para Didion



A primeira, de Philip-Lorca diCorcia, e 'Sunset Strip', de Ed Ruscha, (do livro 'Every Building on the Sunset Strip', 1966).

learning from las vegas

All day, most of every night, she walked and she drove. Two or three times a day she walked in and out of all the hotels in the Strip and several downtown. She began to crave the physical flash of walking in and out of places, the temperature shock, the hot wind blowing outside, the heavy frigid air inside. She tought about nothing. Her mind was a blank tape [...]. When she finally lay down nights in the purple room she would play back the day's tape, a girl singing into a microphone and a fat man dropping a glass, cards fanned on a table and a dealer's rake in closeup and a woman in slacks crying and the opaque blue eyes of the guard at some baccarat table. A child in the harsh light of a crosswalk on the Strip.

in 'Play it as it Lays', (1970), de Joan Didion, pag. 170.

4.6.09

ainda de 'play it as it lays'

O que me pareceu mais curioso nesta obra de Didion foi a aproximação a dois autores por aqui particularmente estimados: C. Bukowski e Raymond Carver, ambos seus contemporâneos. Porém, esta aproximação não é suficiente para inserir Didion no Dirty Realism que caracteriza os outros dois. Por um lado, não é crua e despojada como Bukowski; e por outro, ao contrário das personagens de Carver, Maria é dotada de um impulso de sobrevivência. Como aqui escrevi, em Carver não há luta ou heroísmos estóicos, há apenas conformismo. Com Maria (ou em Didion) há muito mais do que isso.

de 'play it as it lays'

Embora inicialmente tenha sido mais receptivo a alguma influência de 'Play it as it Lays' (1970) nas gerações posteriores (leia-se em Bret Easton Ellis) do que àquelas a que Joan Didion esteve sujeita, vejo agora, quase completada a leitura, que são as últimas as mais marcantes. Mas não só. Na construção do mundo envolvente da sua personagem principal —Maria ("that is pronounced Mar-eye-ah")— estão presentes os resquícios da catarse colectiva da Lost Generation: uma certa desacreditação moral aliada à perda da Fé do legado judaico-cristão. A vulnerabilidade emocional da protagonista nasce (em parte) desta consciência intrínseca de que a batalha estará sempre perdida. Mas se esta influência é sentida apenas nas entrelinhas, mais notória e visível é uma outra que guardo ainda como uma referência maior da ficção norte-americana do pós-guerra: 'The Deer Park' (1955) de Norman Mailer. São múltiplos os fragmentos visuais de 'Play it as it Lays' que remontam para os cenários do romance de Mailer. O social, para começar, no qual as personagens se movimentam igualmente no pouco escrupuloso meio da movie industrie. Mas igualmente o paisagístico que contrapõe a aridez do deserto à metrópole urbana, complexa e dispersa. Tal como em Mailer, também este contexto físico funciona como uma analogia às questões sentimentais e afectivas.
John Wayne em 'Hondo'

O homem, a máquina e a estrada.
Novo tríptico visual de uma velha solidão.

learning from los angeles

Quando os grandes planos urbanísticos da West Coast norte-americana começaram a ser desenvolvidos em prol dos automóveis e da sua extraordinária capacidade de vencer novas distâncias, estes últimos elevaram-se a anónimos protagonistas do quotidiano. É por isto interessante encontrá-los nessa mesma condição de imprescindíveis e paradoxalmente invisíveis em terrenos como os da Literatura e do Cinema. Também a relação das pessoas com a própria solidão foi por eles alterada, acentuando o conceito de deriva urbana. Em 'Play it as it Lays', que remonta ao período de uma odisseia pessoal de uma mulher interrompida por flashbacks, a presença do automóvel, embora muito subtil, é sentida exactamente nestes termos. Sendo máquinas e por isso banais e desprezíveis, são ao mesmo tempo cápsulas de refúgio, espera, decisão, fuga, ou esquecimento. Acima de tudo, conferimos-lhes inconscientemente uma estranha e familiar camaradagem. Como nos tempos dos westerns se via acontecer com os cavalos.

os dias da máquina

proporcionam a reciclagem de uma conhecida litania católica:
O Carro esteja convosco. Ele está no meio de nós.

1.6.09

o seu duplo perene

first impressions

Em 'Play it as it Lays' (1970), da norte-americana Joan Didion (1934), encontramos traços específicos de uma geração literária amargurada, política e emocionalmente, e em permanente estado de introspecção e auto-avaliação. No entanto, numa primeira impressão, não recolho as suas influências, como a Lost Generation, ou contemporaneidades, como o (à altura) recém-formado New Journalism. Recolho, isso sim, algo que poderíamos classificar como aquilo que virá a ser o seu legado; ou, porque não, a sua própria influência a terceiros. Neste caso concreto, podemos ver 'Play it as it Lays' como uma incursão preparatória ao terreno de Bret Easton Ellis uma década depois. Ou seja, muitas cabecinhas descompensadas num plateau social da West Coast de Sex, drugs and fuck'em all.

the coke bottle

"Let's fuck", the actor said from the doorway.
"You mean right here."
"Not here, in the bed." He seemed annoyed.
She shook her head.
"Then do it here," he said. "Do it with the Coke bottle."

'Play it as it Lays', (1970), de Joan Didion.