24.1.08

o burguês

Harry Haller é o fugitivo, o que se esconde. Não de um crime & castigo mas da sociedade em geral, primeiramente, e dele próprio consequentemente. O intuito da sua fuga nasce de uma crescente aversão à burguesia; mais do que a restritiva do sentido marxista, Haller foge da burguesia moral, a balzaquiana, essa classe híbrida que não fode nem sai de cima, que se perde em ambiguidades e dualidades morais e não terá nunca a largesse da aristocracia ou a dignidade do povo. Ou como o próprio Hesse descreve, a que nunca se sacrificará ou entregará à embriaguez ou ao ascetismo, a que nunca será mártir nem consentirá o seu aniquilamento; a que quer servir a Deus mas também aos prazeres terrenos.

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Haller, como Santo Agostinho que pedia a Deus castidade e continência mas não para já, sofre também desse confronto interior comum a tantos homens: a admiração, ou talvez deva dizer a atracção, pelo objecto do seu desprezo. Porque se por um lado Haller despreza a burguesia, por outro não resiste ao encanto do seu charme — discreto, como diria Buñuel — e é na pulcritude das decentes casas de família que encontra lugar para o seu auto-infligido isolamento.

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Hesse utiliza em Haller a metáfora do lobo da estepe para reforçar o caminho solitário, e porque não a solidão? —embora não sejam a mesma coisa— e enfatiza desta forma o carácter mais ferino e primitivo da sua personagem: a fera eremítica no meio dos homens. O livro, mais do que qualquer outra coisa, é uma caracterização literária que foca a consistência de um retrato psicológico.

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Considerado o trabalho mais autobiográfico do escritor, percebe-se que o charme da burguesia seja substituído pelo charme do misticismo, do exotismo da cultura oriental e pelo aparente desinteresse do mundo material. Haller reflecte essa tendência. E é neste ponto que se sente a decepção. Hesse era, apesar de tudo, um burguês e Haller é feito à imagem de Hesse. Quando o escritor procura criar "O" niilista literário por excelência, fica demasiado preso às suas próprias limitações. A devoção ao espírito e a vida contemplativa que definem o carácter de Haller entram em colisão com a descrença de tudo e todos que define o carácter de um niilista. Por isso mesmo Haller não é "O" niilista, é apenas um misantropo que recusa o seu passado e a sua educação burguesa mas não ao ponto de largar o conforto que ela proporciona. O Haller de Hesse é excêntrico e comodista e talvez no fundo isso seja, para gáudio absoluto, a mais elevada condição da bourgeoisie.

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Ofereceram-me o livro com a dedicatória este és tu.
Estão muito bem enganados.