31.12.11

Sylvia writing, circa 1960


Tinha algo no seu despojamento e desapontamento que me lembrava Sylvia Plath. Depois de ler a cópia de 'The Bell Jar' que lhe ofereci disse-me que se tinha revisto demasiadamente na personagem  e mesmo com Plath visto que «até a sua máquina de escrever é igual». Não foi novidade para mim, já o sabia de antemão: parecenças & máquinas de escrever. Da mesma forma que lhe conhecia o lado subtilmente depressivo, flagrante. Agora, jogo na mesa e de cartas dadas, talvez tudo acabe bem. Ao contrário de Plath que, enfim, foi o que se viu.

a year in review (2)

Transformámo-nos em dois veteranos da nossa guerra pessoal. Entre derrotas e vitórias de guerrilha emocional nenhum ganhou muito. Ambos vítimas e carrascos, agora elementos em reconstrução, sobreviventes no espólio de uma história de amor-ódio.

30.12.11

a year in review

De todos, quem me ofendeu foi quem estava mais perto. Não os meus inimigos; se é que tenho algum por aí. Ao passo que ofensas de inimigos podem nem sequer chegar a ofender, quando o acto é perpetrado por alguém que nos é íntimo os estragos são mais ou menos consideráveis. Aos inimigos, como se sabe, não se dá o flanco. O que aprendi este ano é que àqueles que nos são tão próximos que quase se confundem connosco também não.

29.12.11

surveillance, one day ago

Saio de casa pelas seis e trinta em ponto. Ainda não é dia. Inicio a corrida com cuidado, foram algumas semanas de descanso, preguiça e desculpas esfarrapadas para mim mesmo. Passo por baixo da plataforma elevatória do Brooklyn-Queens Expressway. Por cima vejo os helicópteros plantados como câmaras de vigilância fixas para levar a todas as casas o trânsito before the world wakes up. O barulho monótono e impositivo remonta a ficção, a um ultra controlo de um regime totalitarista que observa os seus cidadãos, futuro e passado; talvez não tão ficção, concluo. Chego ao tartan do McCarren Park já cansado e tento não ouvir as minhas próprias lamúrias. Alguns corredores estão no seu ritmo, percebo-lhes as sombras entre as luzes dos holofotes que iluminam a pista. Não consigo acompanhar nenhum deles. Estou enferrujado, lento. Luto, corro. Devagar. Aos poucos. Quase parado.

Helena Almeida, Ouve-me, 1979.

28.12.11

that kind of

Diana pergunta a Frank se ele a ama. Ele responde-lhe que é uma espécie de amor. Responde-lhe que com uma mulher como ela como pode um homem saber? A resposta é soberba. Frank não mente, é sincero. E consegue igualmente resumir as angústias que um certo tipo de mulher provoca num homem. Diana é filha de um milionário, bela, mimada, caprichosa, insegura e manipuladora. Frank é um homem vivido, ex-piloto de corridas, sem grandes ou nenhumas pretensões para além de criar o seu próprio negócio para o qual poupa trabalhando noite dentro como condutor. Frank e Diana conhecem-se por acidente numa noite em que Frank, de plantão, é chamado na sua ambulância à mansão de Diana. O que acontece a seguir já era um clássico do cinema mesmo antes de Preminger o ter filmado aqui também. Diana fascina-se com a ideia de independência e os ares de masculinidade — e seduz Frank com truques de femme-fatale sofisticada que as mulheres do mundo dele não poderiam nunca igualar. No desenrolar dos eventos Frank apercebe-se do erro e tenta a fuga. Mas o que encontra é antes uma acusação, um julgamento, um casamento forçado. Depois de tudo ultrapassado Frank não desiste de Diana; até ao momento em que tem de o fazer para não desistir dele próprio. Na impossibilidade de ficarem juntos, Diana engana Frank e provoca aquilo que é uma das mais espectaculares quedas do cinema a preto e branco. Morrem os dois. De todo o pó e destroços ficou apenas a memória de Frank. Para que outros homens aprendessem alguma coisa com isso.

27.12.11

year after year

Embora «novo», envelheço. Dou conta dos anos a passar. Não só em mim. Nos outros, o meu espelho, também. Percebo que envelheço mas que sou o mesmo. Por vezes sem o ser mais naquilo em que o era. Ou quase sempre por ser gradualmente um pouco menos daquilo em que o fui. Mas gosto de pensar que, diferente ou não, sou mais do que alguma vez poderia sequer pensar ter vindo a ser. A ilusão, velha companheira de armas, lado a lado com a derrota de uma vida. Torne-me assim noutro homem, dia após dia. Melhor, gostaria. Mais velho, certamente.

22.12.11

blinky palermo


To the People of New York City.

do ensino do Desenho, da Forma e da Cor

A leitura da História da Bauhaus foi útil em diversos aspectos. De todos, o mais importante talvez tenha sido a confirmação de que tudo o que aprendi sobre Desenho, Forma e Cor desde o início do curso de Introdução às Artes Plásticas, Design e Arquitectura (do nono ao décimo segundo ano) até à conclusão da universidade teve uma relação directa com alguns dos métodos pedagógicos criados pela Bauhaus. O pior, foi que nesses dez anos de aprendizagem nunca ninguém me tenha dito isso.

17.12.11

the world before you wake up

O alinhamento dos quatro pivôs no poster sugere profissionalismo a mesma posição frontal que assumem perante a câmara durante a emissão mas as expressões faciais remetem para uma intimidade com o possível espectador que vai para além da seriedade do noticiário e deixa antever «diversão». No anúncio prometem acompanhar os nossos despertares com o trânsito, as notícias, as actualidades, das 4.30 às 7.00am, everyday, utilizando o lema «the world before you wake up». A fotografia dos pivôs é misturada com outros sinais comuns aos passageiros do metro: a silhueta da cidade por trás, o logótipo da cadeia televisiva local, as letras em fontes dinâmicas  dinâmicas como os elementos da equipa que nos traz o mundo antes de acordarmos. A mistura racial dos pivôs aponta para uma diversidade nos conteúdos noticiosos: o mundo de todos e não o de apenas alguns. Um caucasiano, uma latina, uma asiática e um afro-americano  this is America , com nomes próprios e sem apelidos a intimidade —, todos de sorrisos rasgados a antevisão da diversão. Detenho-me particularmente nesta estereotipia do pivô: os mesmo fatos, penteados, maquilhagens, branqueamentos de dentes. A validade da sua heterogeneidade racial só interessa assim num primeiro plano e serve apenas para a coesão de um objectivo final. À parte disso são figuras planas e iguais. Ocas, sem expressão ou tridimensionalidade. 

12.12.11

moholy-nagy


O homem que foi o white-collar de blue-collar.

praise the machine (2)

Figura estratégica da mudança de rumo da Bauhaus foi o multifacetado húngaro Lazslo Moholy-Nagy. Amplamente influenciado pelos construtivistas, Moholy-Nagy defendia no seu tratado 'Constructivism and the Proletariat' (1922) a realidade do século como a technologia: a invenção, construção e manutenção de máquinas  «to be a user of machines is to be of the spirit of this century». Sendo a Fotografia a mais mecanizada e tecnológica das artes à época compreende-se que, para o húngaro, quem nada soubesse de Fotografia não passaria de um iliterado visual. Durante o trabalho vestia-se como um operário de fato-de-macaco e deixou de lado as suas ambições artísticas pessoais pelo interesse colectivo, visto que lhe parecia que «a indulgência pessoal em criar arte em nada contribuiu para a felicidade das massas». O seu romance com a Máquina e o Socialismo prosseguiu e Moholy-Nagy provou ser o homem que Gropius idealizou para a Bauhaus desde o início: a mecanização como o meio de extrapolar a produção do homem a favor do colectivo. O que fez com que o seu antecessor Joannes Itten, intelectual dado a espiritualismos e impulsionador da actividade artística pessoal, se tornasse no vanguardista mais obsoleto do século XX.

11.12.11

praise the machine


«Everyone is equal before the machine. I can use it, so can you. It can crush me; the same can happen to you. There is no tradition in technology, no class-consciousness. Everyone can be the machine's master or its slave.»

Lazslo Moholy-Nagy, 'Constructivism and the Proletariat', 1922.

10.12.11

the battle of love

A vida amorosa de Alma Mahler deu corpo a inúmeros comentários durante mais de meio século. O pintor austríaco Oskar Kokoschka experimentou com ela todos os estádios da «paixão». Começou com amor à primeira vista numa soirée cultural vienense e terminou numa decapitação simbólica a evocar grotescos rituais pagãos. Nesse espaço de tempo, cerca de três anos e nos quais lhe escreveria mais de quatrocentas cartas de amor, Kokoschka desenhou e pintou Alma da mesma maneira obsessiva com que a possuiu. O traço expressionista das suas telas deixa antever a intensidade frenética passada no leito dos amantes. Em 'Noiva do Vento' (1913) o pintor enfatiza a tormenta que é a vida fora do círculo de Alma, simultaneamente musa e único reduto possível de quietude. Sobre ele, Alma disse que o que passaram juntos foi uma batalha de amor, que nunca antes disso tinha provado tanto Inferno como tanto Paraíso. Com o tempo, o lado ciumento de Kokoschka começou a pesar mais do que o seu lado libidinoso e Alma cansou-se. Forçou o afastamento provocando Kokoschka pela sua cobardia, por ainda não se ter voluntariado para a guerra que assolava a Europa. Igualmente aconselhado pelo seu amigo Adolf Loos, Kokoschka partiu e foi gravemente ferido, apenas para descobrir no regresso a relação de Alma com Gropius. No desespero pela perda irreversível, Kokoschka encomendou uma boneca em tamanho real que possuísse as mesmas características físicas de Alma. Quando finalmente chegou mostrou-se deficiente para o seu maior propósito original. Sem utilidade para o consolo de alcova, Kokoschka organizou uma festa que culminou com a decapitação da figura regada com vinho tinto. A catarse do estado de alma (e Alma) e a cauterização de uma cicatriz que ficaria para toda a vida. Comparado com Kokoschka, o lunático da 'Sonata a Kreutzer' do Tolstoy parece um menino.

4.12.11

weimar (3)























Alma Schindler.
Viúva de Mahler, mulher de Gropius, amante de Werfel.
Tudo ao mesmo tempo.

weimar (2)

Um dos pioneiros Mestres da Forma da Bauhaus foi o pintor suíço Johannes Itten, um homem dedicado à teoria da cor e às práticas do esoterismo. Um vanguardista dentro dos vanguardistas. Adepto do movimento religioso Mazdaznan, uma espécie de pré-new-age do virar do século XIX, usava cabeça-rapada e túnicas desenhadas por si. Dentro dos seus métodos de ensino estava a relaxação corporal, exercício no qual os alunos deveriam sentir com os seus corpos gravidades de diferentes formas geométricas. Conseguiu converter alguns estudantes e ainda transformar os hábitos alimentares da cantina para um vegetarianismo temperado fazendo com que a Bauhaus se assemelhasse mais a um retiro espiritual do que outra coisa. Itten foi forçado a partir ao fim do seu segundo ano. A comunhão do corpo com o espírito e a expressão introspectiva individual artística não estava na agenda de Gropius para a Bauhaus. Da mesma maneira que não estava para o porvir do século XX.

weimar (1)

Os primeiros anos da Bauhaus em Weimar foram para Walter Gropius uma série de dores de cabeça. Faltas de meios e de fundos impossibilitavam a perfeita execução dos objectivos do seu manifesto no qual Arquitectos e Artistas deveriam voltar a uma condição de Artesãos, de homens de construção. Para o corpo docente, Gropius juntou mestres de diferentes áreas artesanais como a Carpintaria, a Tapeçaria ou a Olaria a artistas intelectuais, apelidados de Mestres da Forma, para em conjunto ensinarem técnica e estética. Gropius percebeu o essencial que «antes da arte estava a techné»  mas a precaridade económica do projecto provou o contrário. Sem fundos para os apoios técnicos nos workshops, a Teoria venceu a prática. 

3.12.11

repent yourselves, 2010



Em 'Atlas', iniciado em 1964 e em contínuo desenvolvimento, Gerhard Richter começou uma colecção a partir de fotografias retiradas de álbuns de família, de recortes de publicações e de postais. Poderíamos vê-la como uma interpretação da Biblioteca de Babel, de Borges, mas para a Imagem ao invés da grafia: um Arquivo Universal. Nesse arquivo encontramos imagens amadoras e familiares, jornalísticas e profissionais, de paz, de guerra, de autor, retratos, desenhos, textos e anotações manuscritas. Erotismo, pornografia, violência, demência, ingenuidade, apatia, infância, êxtase, quase tudo está representado neste conjunto de cerca de 5000 imagens e ele revela-se em parte como uma testemunha histórica — dos costumes, das ideias e das emoções — dos séculos XIX e XX.

Numa tentativa de marcar uma linha cronológica e descritiva (através de imagens) que também operasse como uma «testemunha histórica», procurei pelos alfarrabistas e lojas de velharias norte-americanos fotografias de álbuns familiares que correspondessem a um período muito específico dos EUA: da entronização do American Dream à queda deste; ou seja, inícios de 1950 a finais de 1970. A selecção de imagens unicamente de carácter amador deriva da particularidade de encontrar nelas uma estética muito reveladora do período. Estas fotografias, conhecidas como kodak snapshots, resultam descomprometidas e casuais e surgem assim como as melhores testemunhas de uma identidade suburbana e colectiva. Nascem, paralelamente, de uma desculpabilização do sujeito perante o objecto.

Ao catalogar uma época através de imagens amadoras, quis igualmente acrescentar-lhes elementos que, por um lado, enfatizassem as raízes de uma identidade colectiva e que, por outro, questionassem a evolução dessa mesma «identidade». A incorporação de passagens bíblicas que focam o arrependimento e a entrega, (retiradas da versão Protestante da Bíblia), aos elementos fotográficos vem precisamente nesse sentido. É uma referência ao legado Puritano norte-americano que se regula por um ascetismo visual e emocional dentro da sua lógica de contenção física e espiritual: todos somos pecadores devido ao Pecado Original, nada mais nos resta do que o arrependimento.

«Repent Yourselves» explora assim o confronto dessa liberdade e individualidade do Sonho Americano —a celebração, o ócio, o lazer, o hiper-consumo, a padronização do life-style— com os dogmas de conduta puritanos da expiação da culpa pelo arrependimento enraizados no subconsciente colectivo de uma sociedade e cultura. Se as fotografias familiares e desinibidas sugerem a desculpabilização, as referências biblícas reforçam o seu oposto.


Imagens: 
'Repent Yourselves', 2010, Pedro Duarte Bento
12 original Kodak snapshots with biblical inscriptions wooden framed, ed. 1/1