30.4.09



Depois de ver atentamente a composição estética da cena da loira violada pelas três chinesas de cabelo preto e vestidos encarnados — ou a cena da casa de massagens com três chinesas nuas com os corpos cheios de óleo — não tenho quaisquer dúvidas que Francis Giacobetti, o realizador, conhecia o 'Sing a Song Sex', (1968), do mestre da nova-vaga japonesa Nagisa Oshima. É que isto de filmar fetiches, como se compreende, não se aprende assim do pé para a mão.

Emmanuelle; com maiúscula (3)

'Emmanuelle, L' Antivierge (2)' (1977) acompanha a viagem de barco de uma mulher, Emmanuelle, até à Ásia para juntar-se ao marido, um engenheiro destacado em Hong-Kong. Sendo um filme de época, podemos dizer que o casal é moderno, o que significa que cada um vai com quem bem lhe aprouver. No entanto, as aventuras individuais são relatadas e partilhadas, servindo posteriormente de excitante mental e carburador físico aos dois; ou três, ou quatro. Ciúmes e encornanços são coisas de gente mesquinha e popularucha. Liberais com estilo são como a aristocracia de Laclos: têm muita largesse.

Emmanuelle; com maiúscula (2)

Dos diálogos do filme 'Emmanuelle 2' podemos dizer o mesmo que dos do 'Emmanuelle 1': são ao mesmo tempo uma merda e muito bons. Uma merda porque são meio pirosos; muito bons porque são em francês. E em francês uma mulher também dá sempre muito tesão.

Emmanuelle; com maiúscula

Os títulos começam com 'Io, Emmanuelle', de 1969, e no ano 2004 ainda há vestígios da libertina francesa pelo mundo do erotismo cinematográfico. Já foi branca (quase sempre), preta (1976), asiática (1977), sedutora (1978) e a rainha de Sados (1979). Esteve em África (1976), Cannes (1985), Veneza (1993), Rio de Janeiro (2003) e também no Inferno (1982), de onde escapou no ano seguinte como ilustra o empolado título 'Emmanuelle Escapes from Hell'. Em 2000 estava no Paraíso e curiosamente nesse mesmo ano chegou a ir ao espaço. Nos cerca de 60 títulos, que incluem episódios TV, foram várias as mulheres que encarnaram Emmanuelle. Quanto a mim, só vi dois com a holandesa Sylvia Kristal. O que, acrescento, com outras interpretações de mulheres como Erika Blanc ou Laura Gemser me parece uma verdadeira lástima.
Enfim, não se pode ir a todas.

27.4.09

those ghostly traces, photographs



Na manhã de 8 de Junho de 1968 o corpo de Robert Kennedy era transportado de Nova Iorque para Washington de comboio. Centenas de milhares de pessoas alinharam-se ao longo da linha de caminho-de-ferro para prestar uma última homenagem a Bobby. A bordo ia o fotógrafo Paul Fusco (1930), que registou o trajecto num conjunto de fotografias que deu origem, o ano passado, ao livro 'RFK'. Percorrendo as suas páginas somos confrontados com o luto de uma nação, mas da mesma forma com um retrato dos seus grupos sociais. Período de grande mudança nos direitos humanos na América — passados apenas quatro anos do Civil Rights Act de 1964 — a comunidade negra tinha em Bob Kennedy um empenhado aliado pela igualdade e contra a segregação racial. Chamavam-lhe 'Blue Eyes, Soul Brother' e mais do que qualquer outra chorou fortemente a sua morte. No livro, sente-se isso muito bem.

25.4.09

that can (and will) be used against you

Numa relação, vírgula, sentimental, há que ter tento na língua quanto à manifestação de impressões pessoais. Seja na forma de um reparo sincero ou de uma provocação pueril, de uma confidência passada ou de um desejo para o porvir, tudo o que se diz fica gravado na memória de quem escuta. Os dias passam e estas impressões pessoais — umas verdadeiras e sentidas, outras insignificantes — tornam-se numa espécie de lascas subcutâneas emocionais. Não se vêem, mas continuam à espera de sair sob pressão. Quando tal acontece, geralmente numa discussão, rasgam a pele e saltam para a conversa num tom quase sempre descontextualizado, quase sempre cruel e definitivamente sempre chantagista. Para evitar o desconforto, ou a injustiça, talvez seja prudente seguir desde o início o conselho do conhecido 'Miranda Warning': you have the right to remain silent. Anything you say can and will be used against you in a court of law.

24.4.09

a geração de 70

Quando o dogmático conceito dos chamados objectivos de vida começa a fazer sentido é sinal de que está tudo perdido. É sinal de que a melancólica satisfação da burguesia se instalou dentro da alma. E com ela a apatia criativa e aventurosa que reduz os homens a espirituosos & eloquentes vegetais.

23.4.09

the lower part

Nuberu bagu, ou a Nouvelle-Vague japonesa, como todas as novas vagas revolucionou e questionou o medium. Técnica e conceptualmente. A par de Oshima e Suzuki, os que conheço melhor, há um outro nome que me desperta um particular interesse no meio de todos os outros: Shohei Imamura. Treinado na escola do drama burguês (e maioritariamente feminino) de Ozu —do qual foi aprendiz— e numa estética de câmara minimalista e equilibrada, Imamura rompeu com os seus pressupostos iniciais interessando-se pelo bas-fond de Tóquio e Osaka e pelas suas personagens de putas, proxenetas e pornógrafos. Os seus filmes são sujos e provocadores. Resta dizer que um homem que afirmou estar interessado "na relação da parte inferior do corpo com a parte inferior da estrutura social" só podia mesmo ter toda a minha simpatia.

17.4.09

a magna magnani



Mas seu, o meu preferido continua a ser 'Mamma Roma'.

da verdadeira essência

'Bellissima' (1951), terceira longa-metragem de Luchino Visconti, é amplamente inserida no Neo-realismo Italiano. De facto, não há dúvidas de que a sua realização se insere no período final da identidade neo-realista mas, à partida, esta obra de Visconti diverge da corrente pelo carácter satírico e humorístico. O neo-realismo habituou-nos a um estilo documental que expõe cruamente a realidade social do pós-guerra. Fá-lo em diversos planos, que vão da denúncia da miséria à reconstrução/transformação física da cidade, e onde a carga dramática é (quase) sempre directa e despojada de artifícios. Em 'Bellissima' também se encontram elementos do neo-realismo, vero, contudo existe paralelamente um filtro atenuante dado pelo tom de comédia que a separa do estilo purista e documental. No entanto este tom, vamos compreendendo no desenvolvimento, alivia uma intensidade melodramática. Entre risos, Visconti apresenta-nos um mundo grotesco.

Mark Shiel, no seu 'Italian Neorealism, Rebuilding a Cinematic City', reconhece em 'Bellissima' (pag. 93) marcas do neo-realismo, embora o seu registo de light-hearted comedy (palavras suas) a afaste da obra (anterior) geralmente politizada de Visconti. Por conseguinte, pode subentender-se, será menos relevante para a identidade da corrente. Inicialmente tive a mesma impressão que Shiel. Porém, no desenrolar do filme, o realismo das discussões reles e grosseiras e das suas personagens fez-me mudar de opinião. O suficiente para dizer agora que estar privado de 'Bellissima' significa estar privado, num contexto vernáculo e humanista, da verdadeira essência do neo-realismo italiano.

15.4.09

ainda há piratas



Robert Louis Stevenson agradeceria.

na sua maioria

Transcendentalmente, o Acaso é universal e omnipresente; tal e qual Deus, dirá Santo Agostinho. Acções e consequências advêm dele. Como conceito abstracto e metafísico, o Absurdo, em parte efeito do Acaso, é mais inspirador e extraordinário. Todos estamos à mercê de uma perpétua casualidade, ou dos tais actos inesperados que produzem mudanças — como em Bresson por exemplo — mas esta casualidade raramente é absurda — como o é em Camus ou até em Paul Bowles (veja-se 'A Distant Episode'). O resultado do Acaso é por isso mesmo, na sua maioria, nada mais do que banal e ordinário. Como as próprias vidas; ou a grande parte delas.

14.4.09

remember, thou art only a man (2)

Realmente na Glória, essa volátil, breve e perigosa partida do destino, convém não esquecer que somos apenas homens. Mas no Fracasso tão pouco convém esquecer que por ele acontecer não deixamos de o ser. Ao fim e ao cabo, o único que não perde é Deus.

remember, thou art only a man

No épico 'Quo Vadis' (1951), de Mervyn LeRoy, o general Marcus Vinicius regressa vitorioso das campanhas no estrangeiro e entra em Roma triunfante diante de Nero e da multidão. Atrás de si, na mesma quadriga, um homem segura-lhe a coroa de louros em ouro acima da cabeça. E de tempos em tempos, no meio do êxtase do Povo, recorda monocordicamente a Vinicius: lembrai-vos, sois apenas um homem.

9.4.09

a golpada

Paul Newman e Robert Redford em 'A Golpada', (1973) de George Roy Hill

Telefonei agora para a Ordem e colocaram-me em espera enquanto transferiam a chamada para outro departamento. Ao mesmo tempo deram-me música de cortesia para me distrair. Apurei o ouvido e reconheci uma versão estilizada da banda sonora d'A Golpada', o thriller de intrujões-mor de George Hill. Pergunto-me o que poderá isto significar.

concentrado

Ao ver na Segunda-feira à noite o concerto da italiana Patrizia Laquidara no Cabaret Maxime não pude deixar de lembrar-me das palavras do meu padrasto, há mais de vinte anos, sobre a Lena d'Água quando a Lena d'Água cantava assim. É pequenina, mas canta muito boa.

6.4.09

de Laclos



Um. Dá conselhos às mulheres do mundo; no ano de 1783:
Receai igualmente o uso das bebidas espirituosas; uma pele lisa não esconde um sangue ardente; deixai às mulheres com poucos recursos este débil meio de incitar, pelo seu exemplo, a este género de deboche, na esperança de aproveitar os desejos que se lhe seguem e que elas não teriam sido capazes de suscitar. (pag. 125). [...] Não vos deixeis jamais dominar pelo mau humor. (pag. 126). [...] O rosto atrai, mas é o corpo que prende. (pag. 128).

Dois. Obviamente, leu Rousseau:
A natureza só cria seres livres; a sociedade só faz tiranos e escravos. Uma sociedade pressupõe um contrato; todo o contrato uma obrigação recíproca. Toda a obrigação constitui um entrave que contraria a liberdade natural; assim, o homem social agita-se continuamente nos fios que o prendem [...]. (pag. 99).

Três. Já tinha ouvido falar de Padma Lakshmi:
A acreditar nos relatos dos viajantes, as bailarinas do Industão sabem dar ao seu olhar, utilizando um pó, a expressão do prazer, mantendo nos olhos as lágrimas ardentes que a voluptuosidade faz verter. (pag. 130).

Transcrições em itálico de 'Da Educação das Mulheres', ensaio de Choderlos de Laclos.
Versão Portuguesa Edições Antígona; tradução de Luís Leitão.

5.4.09

das mulheres de choderlos de laclos

Falando de manifestos da emancipação feminina pela mão de homens não podemos deixar de lembrar Choderlos de Laclos. O escritor francês, autor do conhecido puzzle libertino 'As Ligações Perigosas', produziu no ano 1783 um ensaio (e antes disso um breve discurso) sobre a educação das mulheres. Tamanha teorização deveu-se ao facto de a Academia de Chalons-sur-Marne ter lançado um concurso, reflectindo o zeitgeist Iluminista, que questionava os intelectuais sobre "quais os melhores meios de aperfeiçoar a educação das mulheres?". Laclos, homem de armas e de letras, respondeu.

Primeiramente, no discurso, afirma suportado pelo seu silogismo 'onde existe escravatura não pode haver educação: em todas as sociedades as mulheres são escravas; portanto, a mulher social não é susceptível de educação' que não há assim nenhum meio de aperfeiçoar a educação das mulheres. Ou seja, tal não será possível enquanto a mulher estiver subjugada ao poder masculino. Por isso mesmo apela para que não se deixem "iludir por promessas enganadoras ou o socorro dos homens", pois, da parte destes, não há verdadeiramente qualquer intenção de transformação. Laclos foi peremptório: só se escapa à escravatura com uma grande revolução.

Meses mais tarde retoma o assunto do discurso e escreve o ensaio "Das Mulheres e da sua Educação", no qual contrapõe, numa influência nostálgica e rousseauniana, as vantagens da «mulher natural» perante a «mulher social». A liberdade, o poder e a felicidade foram retirados às mulheres pela Sociedade, pois os "homens pretenderam tudo aperfeiçoar e tudo corromperam". Mas Laclos não deixa de ser uma vítima dos seus tempos. No último capítulo, dissertando sobre beleza e conduta femininas, remete a mulher para uma esfera familiar e privada, acentuando acima de tudo e contraditoriamente o seu papel de objecto.

No final, o que conta é a intenção. Laclos pelo menos tentou.

3.4.09

das mulheres de naruse



Ao deparar-me com este fotograma de um filme de Mikio Naruse noto o quanto ele pode ser sinóptico da sua obra. O universo do cineasta japonês tem como núcleo de gravidade a figura feminina. E aqui, vendo-a sozinha num local íngreme e algo claustrofóbico, relacionamos a espacialidade como uma metáfora para outras realidades por si exploradas: emocional e social. O mundo das heroínas de Naruse, como o de todas as outras, não é fácil. Movimentam-se entre uma certa rigidez cultural e o desejo de mudança numa sociedade que carrega o trauma do pós-guerra. Os homens que as rodeiam são na sua maioria figuras moralmente fracas e derrotadas, despojos de uma guerra perdida, mas que não deixam de exercer a tradicional influência da «superioridade masculina». Naruse opõe-se ao lugar comum e as suas mulheres reagem, reivindicam, lutam. Procuram a independência aliada a uma contemporaneidade de costumes, mais justa e imparcial. Os homens bons são os que compreendem e facilitam esta liberdade e justiça. O cinema de Naruse pode assim ser visto como um manifesto da emancipação feminina; não de uma forma violenta ou ruidosa, mas sim discreta, sentimental e romântica. No fundo, no Japão do pós-guerra ou nos dias de hoje, continua a existir uma actualidade nas suas personagens de uma classe média universal. As heroínas de Naruse não deixam de ser em alguns pontos muitas das mulheres do século XXI. Talvez por isso ele seja tão apreciado pelo sexo feminino.

do cabedal (2)

Em 'Relâmpago' (1952), de Mikio Naruse, a mãe de Kyoko é uma senhora de sessenta anos com quatro filhos. Um de cada marido. Isso também é «cabedal».

do cabedal

Muito se comenta o cabedal do Clint Eastwood. Naturalmente que o senhor com 1,88m e quase octogenário tem uma constituição física impressionante, mas vejamos as coisas ainda de outro ponto de vista. Sete filhos de cinco mulheres diferentes e a actual, Dina Ruiz, é trinta e cinco anos mais nova. Isto sim, é verdadeiramente «cabedal».