30.11.08

Dia de Graças

Por alturas do all american family weekend a leitura de 'August: Osage County' é algo irónica. Utilizando a lógica —imediatamente por aqui adoptada— do obituário do NY Times que diz que se A e B dessem um fruto esse seria C, poderíamos dizer que se Eugene O'Neill e John Cheever dessem um fruto esse seria Tracy Letts. Tal como em 'Long Day's Journey into Night', de O'Neill, a narrativa de 'Osage County' evolui consideravelmente (mas não totalmente) em redor da degradação física e psicológica da matriarca e das consequências e rupturas que daí derivam. No entanto, Letts sai da análise restrita às tensões emocionais do núcleo familiar revelando também ecos da sociedade —o mundo exterior— através da diversidade das suas personagens. Esta diversidade expõe contrastes geracionais e geográficos no ambiente suburbano da classe média/alta norte-americana, o conhecido terreno das short stories de Cheever. Delírios com humor mórbido em redor de uma mesa repleta. Ideal para um Dia de Graças.

27.11.08

à mesa

'La Grande Boufee', de Marco Ferreri 'O Festim de Babette', de Gabriel Alex

O deboche e a circunspecção.

la grande bouffe

Ontem, véspera do Dia de Graças, o mercado de rua de Union Square estava mais cheio do que o habitual. O número das bancas de venda também dobrava o normal dos dias de semana. Centenas de pessoas movimentavam-se entre as preciosidades frescas vindas das quintas upstate new york: vegetais, carne, bolos, compotas, mel, plantas aromáticas, flores e queijos. Celebrando-se hoje o Thanksgiving Day, o Grande Feriado Americano, as famílias juntam-se por todo o país. Esta celebração —de origens religiosas que o tempo transformou em secular— é por tradição um dia dedicado ao acto de comer; o peru, sempre, mas também pretexto para outras (e muitas) variações gastronómicas.

Resumindo, o Thanksgiving Day é como aquele filme do Marco Ferreri: comer até rebentar.

26.11.08

mumbai

Por vezes falamos da sua cidade-natal, que deixou com dois ou três anos, e das diferentes impressões e recordações que temos da mega-city indiana. Falamos das suas visitas anuais aos avós durante a infância e das memórias que retém desse período: da gastronomia ao calor húmido; dos cheiros fortes às cores intermináveis. A minha relação com a cidade é naturalmente menos emocional. Ao contrário de si, não tenho por lá qualquer laço sentimental e visitei-a apenas por períodos fugazes de passagem para outro sítio. Uma vez, no entanto, deixei-me estar mais tempo do que deveria ter-me permitido. Alojado numa pensão muçulmana onde os corvos me acordavam de madrugada pela gelosia partida, vasculhei a cidade até ao meu limite, procurando assim vencer a cobardia das vezes anteriores. De Bandra a Darukhana, de Mahim a Chembur, assisti à miséria na terra, onde pessoas e animais partilham chão e a água.

Tenho-a agora aqui à minha frente, esta colega indiana, que chora discretamente pelos ataques terroristas em Bombaim de há algumas horas atrás. Nos dias de hoje já não tem lá família, mas chora pelos continuados esmagamentos e violações das suas memórias de infância — pelos continuados esmagamentos e violações de uma liberdade pueril e remota.

I can't get over it, confessa-me.
Deixo-a então sozinha com as suas recordações.

femme fatale

O termo é uma grande redundância.
As mulheres, como é sabido, são sempre fatais.

25.11.08

a medida de Deus à medida do homem

Claro que a Enciclopédia, sendo universal, já tinha nas suas múltiplas entradas algumas fotos-tributo de Kate Winslet a Catherine Deneuve. Num exímio trabalho de pesquisa antropológica e de rigor científico, a Enciclopédia demonstra a derradeira resolução: Deus não criou apenas a mulher; Deus diverte-se agora a aperfeiçoá-la cada dia que passa.

24.11.08

arthur miller's all my sons

Na leitura de 'All My Sons' (1947), de Arthur Miller, sobressai o confronto entre o dever moral e a cobardia na negação das responsabilidades pessoais perante a sociedade. Nesta paralela crítica à fragilidade do american dream e ao oportunismo do lucro em tempos de guerra, Miller faz também um retrato da família norte-americana no contexto social pós-conflito, expondo as consequentes fragmentações emocionais de diversos ângulos. A acção decorre em menos de vinte e quatro horas, herança da tragédia grega que Molière já recuperara no século XVIII, mas os elementos fundamentais para a base da narrativa estão dispersos no passado. O momento da acção descobre uma culpa adormecida que na realidade se torna num veículo que transporta para palco outras questões universais: o vazio da morte, as deficiências de carácter, a hipocrisia da sociedade.

Pela crescente carga dramática desta peça, que apesar de tudo começa num registo leve e cordial, foi com algum preconceito que me arrastei ao Schoenfeld Theatre. A localização do teatro e o elenco super-star pareciam antever que 'All My Sons' —embora Miller a tenha escrito numa última tentativa de sucesso comercial— não passaria de uma manobra-de-diversão. Foi um preconceito injustificado, (ou vencido, como em Marivaux) pois acabei por achar que esta adaptação do encenador britânico anti-naturalista Simon McBurney se revelou justa ao teatro naturalista de Miller. E se esta adaptação foi fiel aos diálogos e à ideia de espaços e tempos verbais, alguns movimentos, comparando com a impressão que tive aquando da leitura do original de Miller, resultaram desnecessariamente forçados e despropositadamente histriónicos. Por seu lado, o contraste entre a cenografia minimalista de Tom Pye, seu colaborador na Complicite, e o cenário realista minuciosamente descrito por Miller no Primeiro Acto acentuava a adaptação contemporânea de McBurney. Quanto aos actores, percebiam-se claramente as diferenças de método entre a escola do Teatro e a do Cinema, entre John Lithgow e Patrick Wilson, entre as posturas mais rígida e propositadamente artificial e a mais dinâmica e real. Talvez por esta componente, juntamente com os efeitos vídeo/som, esta peça tenha surtido um efeito algo cinematográfico. O que não é mau de todo.

belle de jour

Kate Winslet - WOW factor - na Vanity Fair de Dezembro 2008

Kate Winslet, melhor do que nunca, {veja-se o meu sorriso}, na Vanity Fair deste mês num surpreendente tributo a Catherine Deneuve em 'Belle de Jour'. Coloco aqui uma foto que encontrei online deixando as restantes para mais uma nobre tarefa da Enciclopédia Universal.

21.11.08

dos planos

O Estado de Nova Iorque alerta constantemente, ou aconselha, as pessoas que residem no seu território a criarem um plano de emergência familiar para usar em caso de catástrofe. O conselho é razoável pois é fácil imaginar o caos —devido a terramoto, terrorismo ou qualquer outro cataclismo— que o colapso das infrastruturas de telecomunicações e transportes pode causar. Esse plano é baseado nesta presunção; nesta alta probabilidade de que todos os meios que normalmente dispomos não funcionam: metro, autocarros, telefones e internet.

Naqueles tempos de início de Primavera combinámos o nosso plano de fuga em tempos de caos. A rota seria por terra, para o lado da vastidão da grande paisagem americana —o lado de Jersey— e não para a península de Long Island encurralada pelo mar. Estudámos o mapa e por fim escolhemos como ponto de encontro fixo em remoto dia de Inferno a extremidade do lado de lá da George Washington Bridge, a uma distância de quatro horas a pé do centro da cidade. O primeiro a chegar espera, disse eu; no matter what. Eu não espero, respondeu-me ela; no matter what.

Os dias passaram e lentamente esquecemos o plano. O caos da incomunicabilidade, afinal, já estava presente e não havia nada mais a fazer. Umas semanas depois esquecemo-nos um do outro.

mais de 20 000

No edifício onde trabalho vive um senhor mais velho, por volta dos seus setentas, que é (ou foi) um conhecido crítico gastronómico do NY Times e de outras publicações. Neste edifício, uma antiga fábrica de têxteis dos anos trinta, as entradas para os diversos pisos fazem-se pelo elevador de carga cuja porta abre directamente, andar após andar, para amplos espaços agora recuperados a novos usos. Uma vez por outra, comigo lá dentro, o elevador pára no segundo andar para entrar a assistente com o cão do dito senhor. Nos escassos segundos em que o cão entra a olhar para mim e em que a senhora entra a refilar com o cão vejo confortavelmente uma pequena parte da casa. As janelas para a 17th Street invadem de luz a zona que é o seu local de trabalho. Geralmente ele encontra-se lá, sentado numa secretária metálica de costas para a porta, vestido de roupão de veludo rodeado por pilhas de papéis e revistas. A parede à sua frente está repleta de livros, do chão ao tecto, em prateleiras que começam ao lado da janela e continuam para fora dos meus reduzidos dez metros de raio visual. Um dia perguntei à assistente quantos seriam. Mais de 20 000, foi a resposta.

Fiz de seguida as contas.
Dá um livro por dia; durante todos os seus dias de homem adulto.

19.11.08

a velocidade fulminante

A velocidade fulminante que transforma a «paixão» em «desprezo» vem manifestamente descrita em diversos anúncios de automóveis: dos zero aos cem, em seis segundos.

a lição

É ingenuidade pensar que podem durar, que serão longas, que serão para sempre. As relações, durem cinco dias ou cinco anos, têm sempre uma morte anunciada; apenas inicialmente disfarçada e maquilhada pela ilusão. Como começam, invariavelmente acabam, fazendo com que se tornem em objectos coleccionáveis —uns atrás dos outros— meio perdidos, meio esquecidos —uns mais do que os outros— amontoados a ganhar pó numa prateleira ao longo da vida.

Por tudo isto, deveriam ensinar na escola: milagres só na Bíblia. E poupavam a todos os futuros adultos muito, muito trabalho.

14.11.08

everyman

Perguntou-me o que quis dizer com flexibilidade da condição humana. A resposta poderia ser dada com base num chavão intemporal — utilizando a sempiterna Humanidade como protagonista — mas também poderia ser fundamentada em experiências pessoais. Falei-lhe por isso de mim, ao invés de falar de outros, mas tendo a certeza que falando de mim estaria simultaneamente a falar de muitos mais. As experiências, embora de alguma forma únicas e pessoais, são também gerais e universais aos olhos dos tempos; ou da teoria de Lavoisier, pelo menos.

Assim, utilizando este conceito da flexibilidade da condição humana, refiria-me a como os golpes do Acaso (os maus e os bons) e as consequentes metamorfoses que eles provocam do ponto de vista físico, emocional, económico e social confrontam a capacidade humana de adaptação (uns mais do que outros) aos novos padrões, às novas regras, aos novos defeitos e até aos novos predicados. Esta flexibilidade é um reflexo do instinto de sobrevivência e é uma subliminar constante, quase inconsciente.

Se somos estóicos — e seremos? — por enfrentarmos a Vida & Morte, não é por um acto de coragem mas por ser a única opção. É-nos colocada de bandeja, a vida, com um prazo incerto, a morte. É este hiato temporal — o processo irreversível da infância para a velhice que marca desde logo o princípio do fim — no qual a condição humana varia. Num quadro imaginário podemos conceber as vidas dos outros: linhas serenas e predominantemente horizontais para uns, vertiginosas parábolas para os restantes; sendo estas linhas referentes à miséria e à fortuna, à saúde e à doença, ao amor e ao ódio.

Depois dei um exemplo: o meu, que almocei nos cinco estrelas e dormi num banco de jardim; que velejei no Hudson e dormi num banco de jardim; que tive garrafa no Tenjune e dormi num banco de jardim. Ao todo —acto que ofendeu os poucos amigos chegados— foram três as noites passadas num banco de jardim na cidade que nunca dorme. Mais do que nunca, foi nessa altura que me fixei nas palavras de Bukowski:

if you’re going to try, go all the way / otherwise, don’t even start.

Agora, passados largos meses, a minha reacção a tão aventuroso episódio é exactamente a mesma daqueles dias de Verão: nada de extraordinário, apenas um efeito da flexibilidade da condição humana; tão pouco um acto de miséria, de coragem ou de loucura. E volto a fazer tudo o que fiz antes de dormir num banco de jardim, sabendo que o banco de jardim, esse, estará lá sempre à minha espera.

13.11.08

those ghostly traces, photographs

'My Mother', copyright_Lorie Novak

12.11.08

mrs. way

Perto da esquina da Strand Bookstore reconheço a cara da senhora por detrás de uma banca que vende luvas e cachecóis. Dirijo-me a ela, cumprimento-a e digo-lhe que gostei muito de vê-la em palco há uns dias no boteco familiar do Harlem. Surpreendida, sorriu e agradeceu-me. Em que dia, perguntou por fim. No do Obama, respondi. Os olhos dela brilharam enquanto se lembrava daquelas horas de festa e dos minutos em que subiu ao tosco estrado de madeira. Depois, com a voz profunda da soul carregada de sotaque afro-americano e rouca por décadas de noites demasiado longas, confessa-me: ya know, baby? I'll never forget tha' nite.

Deu-me o seu endereço do myspace no final da breve conversa. Oiço-a agora, enquanto penso na flexibilidade da condição humana em todos nós.

11.11.08

'play the piano drunk like a percussion instrument until the fingers begin to bleed a bit'

Com este título, seria impossível não comprar o livro.
Ainda por cima sendo de quem é.

big lebowski (3)

Na leitura de 'Film Noir', do britânico Mark Bould, deparo-me com um conceito interessante: 'Big Lebowski', que também é um neo-noir muito peculiar, é o Raymond Chandler dos irmãos Cohen. Tem um anti-herói, tem confusão, traição, mulheres fatais, crápulas, raptos, armas, morte e Epílogo. É bem verdade, esta pequena curiosidade.

sexy, scary, and often naked



A BAM Cinematek, em Brooklyn, tem um ciclo sugestivamente intitulado "Sexy, Scary, and Often Naked". O mais recente foi dedicado à esguia e letal Asia Argento. Aqui em 'Boarding Gate', um filme de Olivier Assayas. Mais uma vez, cá está ela: sensual, assustadora e frequentemente (quase) nua.

10.11.08

a densidade, os 'wow buildings', as vantagens da crise, a crise da crítica e por aí fora

Ontem, no suplemento 'The City' do NY Times, a crítica octogenária Ada-Louise Huxtable falava do que sabe melhor: da sua cidade. Uma entrevista de Phillip Lopate.

{How can I be against density? I’m a New Yorker. I grew up with density.}
{[...] in a way I’m glad for this downturn in the economy. Because so much bad stuff was being built.}
{The Museum of Modern Art has become a real estate operation. I admit a certain amount of nostalgia: I remember a street that was once one of the best streets in New York, 53rd Street.}
{Bloomberg’s a businessman: he thinks development is planning.}

e por aí fora.

6.11.08

o meu tributo

Copyright PDB

a Vadim Yusov.
(tríptico, NYC, Julho/Setembro 2008)

Etiquetas:

election night

A um dado momento da noite meti-me num táxi e subi, ladeado pelo Hudson River, as cento e trinta e tal ruas que me separavam da minha espelunca favorita de jazz no Harlem. Nos vinte minutos da viagem pela auto-estrada deserta via apenas as luzes do lado de Jersey, os estranhos reflexos por elas criados nas águas de um rio escuro e a passagem ocasional de algum carro na faixa contrária. Na rádio passavam de novo os discursos, o de McCain, o Homem, e o de Obama, o Messias. As palavras de ambos voltavam a encher-me a cabeça, mas agora de uma forma distante, algo ausente. Nesse momento apercebi-me que há muito tempo não encontrava tamanha quietude neste descomunal e denso contexto urbano, deixando assim os pensamentos fluírem sem rumo pela janela semi-aberta.

No Harlem, por sua vez, a euforia já enchera as ruas horas antes. Quando desci os quatro degraus e entrei no bar despertei finalmente da viagem letárgica. Músicos e espectadores juntavam-se no palco — que na verdade nem em tempos idos teve fronteiras muito definidas — e cantavam em uníssono Obama, Obama num tom de reminiscências tribais. Apesar de por aquela altura já ter passado um bom bocado da uma da manhã, a festa estava apenas a começar.

5.11.08

quando o mundo parou

Quando o mundo parou estava eu num boteco de emigrantes em Greenwich Village. Por seu turno, em Chicago, Obama pisava o palco e recebia a ovação dos milhares que estavam à sua frente; recebia também a ovação das dezenas que estavam à minha volta, a centenas de quilómetros de distância de si. Começou o discurso de vitória; agradeceu, em primeiro, enalteceu, em segundo, e prometeu, em terceiro. Foi um discurso firme, sentido, emocional. O momento era histórico e as palavras de Obama traziam aquilo que muitos estavam à espera há demasiado tempo — change and hope, o que quer que isso signifique. Por um momento recuei até à porta e espreitei a rua deserta e estática, um cenário irreconhecível da cidade que nunca dorme. Depois olhei à minha volta e não vi em toda aquela gente mais do que concentração, focagem; transe até, ou talvez. A voz de Obama trazida pelo televisor na parede hipnotizava todos os presentes. Por esta altura já não havia piadas, sussurros, desinteresse.

Lembrei-me então daqueles filmes em que o mundo pára em redor de uma notícia e é-nos mostrado o efeito global em suaves dolly shots com cores saturadas: uma família de agricultores no Arkansas em frente à televisão, um punhado de indianos à volta de um radio em Benares, uma multidão em África que escuta alguém que de megafone traduz a informação, um molho de gente num café de um qualquer vilarejo em Itália. Ontem — naqueles exactos minutos — foi um desses momentos em que o mundo parou; e mais uma vez a realidade superou a ficção.

4.11.08

election day

Hoje a cidade despertou mais frenética do que o habitual. Na 16th Street com Union Square, a fila para votar chegava à ponta do quarteirão da 5a Avenida. Ainda não eram sequer nove da manhã. Parei um pouco para observar discretamente a multidão, essa curiosa e extraordinária prova da variedade da espécie humana. Dezenas de pessoas paradas à espera; impacientes, por um lado, mas ao mesmo tempo eufóricas, vítimas de uma estranha energia. Palavras como mudança ou esperança saltavam das conversas entre desconhecidos. Uns falavam por todos, outros abanavam apenas a cabeça em tom concordante. Naqueles breves minutos não houve discussões nem opiniões contraditórias. Sentiam-se, de algum modo, cruzados da mesma guerra, soldados filiados numa mesma moralidade. Deixei-me estar ali a olhar para todos e a pensar que afinal tão diferentes, tão iguais.

Não dura muito.

1.11.08

a geografia nocturna

'The King of New York'

De Abel Ferrara.