28.2.08

into the wild

'Careers are an invention from the 20th century.'

dos exageros

Borges conta, sobre Buda, que quando este cumpriu dezasseis anos o pai lhe ofereceu um harém numa tentativa de reclusão ao mundo exterior. Em seguida, devido ao evidente exagero hindu, o escritor recusa-se a dizer o número de mulheres que o formavam. Depois questiona-se porque não o fazer e acaba por dizê-lo: Oitenta e quatro mil mulheres; ou claramente o evidente exagero hindu.

eu hoje acordei assim

Com a Bomba Inteligente em novo endereço.

26.2.08

onde a monica bellucci e a
scarlett johansson se beijam



'Beasts' possui características, ou paisagens, tão enraizadas no imaginário cinematográfico que tendo agora a atribuir às personagens literárias rostos contemporâneos. Assim, se 'Beasts' fosse um filme, seria de Mike Nichols (baralhei-me), lembro-me de 'Carnal Knowledge', claro, e Harrow seria Dermot Mulroney ou outro qualquer do género. Dorcas, mais velha e com sotaque, teria de ser Monica Bellucci e a colegial Gillian a Scarlett Johansson. Agora imagine-se. Ou não fosse este um post essencialmente masculino.

25.2.08

as bestas

Afinal ‘Beasts’, de Joyce Carol Oates, não é sobre pesadelos; talvez seja sobre sonhos. É sem dúvida sobre o animalesco que há debaixo da pele de cada um: de Harrow, o académico, de Dorcas, a mulher francesa, e também de Gillian, a narradora, que como todas as demais alunas de Harrow é uma mulher no princípio da idade adulta, fascinada pela força intelectual do jovem professor que declama D.H. Lawrence com a voz rouca, queimada pelo tabaco, e pela beleza sensual e agressiva da sua mulher. Harrow conhece o poder que exerce no meio da comunidade; ao longo dos tempos, com Dorcas, escolhe as suas preferidas para partilhar a cama num jogo a três.

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‘Beasts’ denuncia a subversão de valores naquele que poderia ser o palco do paradigma moral americano, no tradicional ambiente colegial e universitário de uma pequena cidade de província. Explora um conflito de condutas, um ensaio sobre o ciúme e a sedução, a desilusão e o ódio; todos inconscientemente cadenciados pela descoberta de uma sexualidade fora do convencional, ou do moralmente aceitável ao meio. O mundo lá fora não interessa: a guerra do Vietname é um cenário dos outros, dos que estão presos a uma vida sem sentido. Em Catamount os sentimentos são carnais, os desejos proibidos, as relações são jogos e mentiras; e a felicidade, como na 'Metamorfose' de Ovídio, só é possível na condição inumana. Todos somos bestas, pois só na bestialidade encontramos a felicidade.

ainda outra América

'Learning from Las Vegas', Robert Venturi, Denise Scott-Brown

nova inglaterra

Se não tivesse sido por uma questão profissional poderia dizer que foi uma influência de Herman Melville, pois, como disse, as aventuras dos seus livros instigam-me a viajar. Arranco na manhã de sexta-feira a caminho de Boston e com a companhia de autocarros Fung Wah, monopólio de Chinatown, faço a viagem de cinco horas. Atravesso os estados de Nova Iorque e Connecticut até chegar a Massachusetts. Ao longo do trajecto perco-me inúmeras vezes na contemplação da paisagem coberta de neve e povoada por esqueletos de árvores escuras. Os arrabaldes industriais junto ao mar, com as suas estruturas de ferro e aço e longas chaminés, chamam a minha atenção mais do que qualquer outra coisa. É esta a Nova Inglaterra de Melville, penso; New Bedford e a ilha de Nantucket não estão longe. A chegada a Boston é feita de noite. Rumo depois para Cambridge, do outro lado do Charles River, e chego finalmente a Harvard, ponto de partida para o fim-de-semana.

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The first time I laid my eyes on P. it was in a winter night at the Harvard Campus. He was wearing a green anorak with a furred hood and fisherman black rubber boots. I also remember that he was walking in a strange and uncomfortable way in the thick snow. Then, without really seeing me, he asked me where de Memorial Hall was. Due the strong wind and the snow flakes in our way I barely understood him, but I pointed through the covered path; and he left like an uneasy duck off-shore.

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Boston e Cambridge possuem o charme de uma América distante no tempo, vitoriana, muito longe do arquétipo da cidade-em-movimento hiper-moderna. Dos bairros do Downtown e do porto de Boston ao Campus da Universidade de Harvard e às suas áreas residenciais com casas de madeira cobertas de neve, tudo se assemelha a um anacronismo quando comparado com a América actual. Boston, em parte, parou no tempo. O que é muito bom.

20.2.08

o denominador comum

The Nightmare, de Henry Fuseli

'O Pesadelo'/ 'The Nightmare', de Henry Fuseli.

O que tem 'Beasts' de Carol Oats em comum com 'Siete Noches' de Borges? Nas edições que tenho ao meu lado a resposta é a capa. Ambas são ilustradas com 'O Pesadelo' de Henry Fuseli. Em 'Beasts', que apenas comecei, ainda não percebi o porquê da escolha para além do título: bestas/demónios; em 'Siete Noches' isso é óbvio: uma das sete palestras de Borges que formam o livro é exactamente sobre o pesadelo. E como o próprio escritor argentino explica, Fuseli pintou o tema segundo a forma mitológica. Alp, ou o elfo, é o monstro que o representa, pairando sobre o corpo feminino em agonia. Em segundo plano o equídeo, justificado pela antiga expressão inglesa night mare, ou a égua da noite, que traz consigo o terror nocturno.

os insultos

Em 'Beasts', de Joyce Carol Oats, salta-me à vista a frase crua: 'I love insult, it's always honest'. Parece-me que não; parece-me que o insulto, por vir de um acto de ira, pode conter escárnio, amargura e por conseguinte deturpação e desonestidade.

No que me toca, prefiro dizer que 'adoro a honestidade; é sempre insultuosa'. Aqui não há lugar para enganos.

19.2.08

da aventura

Melville, como Conrad, provoca no leitor (ou em mim) um eterno estado de suspensão. Há uma espera constante pelo resultado de um confronto entre o Homem e forças maiores e incontroláveis; sejam os mares, os ventos, os leviatãs, as superstições. Na atmosfera literária destes dois escritores —que contudo são diferentes— paira um sentimento de ameaça perene envolto numa aura duplamente mística e mítica. Os seus homens, como o Ulisses de Homero, partem numa odisseia, na sua epopeia pessoal; e ulteriormente, de uma forma algo inevitável, são levados a testar o limite das suas capacidades físicas e psicológicas.

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As aventuras dos livros de Melville, como as de Conrad, povoaram uma percentagem do imaginário da minha adolescência. Com a melancolia dos Mares do Sul e as noites estreladas características deste hemisfério; com a solidão dos oceanos e o mistério da escuridão; com o exotismo e a necessidade da descoberta pessoal. Foram sempre, em parte, catalisadores do meu desejo de aventura. Agora, já adulto, continuam a instigar-me, a questionar-me e provocam em mim irremediavelmente o desejo de partir. Para onde seja, de saco às costas; como Ismael a caminho de Nantucket.

a essência

"Some years ago –never mind how long precisely– having little or no money in my purse, and nothing particular to interest me on shore, I thought I would sail about a little and see the watery part of the world." 'Moby Dick', Capítulo I, de Herman Melville.

A essência. Da metáfora.

15.2.08

de volta aos clássicos

14.2.08

das traduções

Nunca gostei de ler em castelhano autores estrangeiros ao idioma; corrijo: nunca gostei de ler autores norte-americanos em castelhano. Pois se noutros, como Kapuscinski, Zizek, Tchekov, Bergman ou Barthes, nunca me incomodou a tradução, já em Raymond Carver ou Don DeLillo estas pareciam-me um "atentado" à essência do texto. Lembro-me por exemplo de quando vivia em Barcelona e comprei a versão espanhola do 'The Maltese Falcon' de Dashiell Hammett: 'El Halcón Maltés'. Ao fim da terceira página fui trocar o livro pois ler a palavra 'cariño' saída da boca do Sam Spade só traz à memória os actores-porno de segunda, dobrados em espanhol, que brilhavam nas sessões contínuas das quintas-feiras no canal 18 durante a década de 90. E tal como o Sam Spade em castelhano me soava ao Ron Jeremy, as short-stories do Carver pareciam-me os episódios do 'Anjo na Terra' que eu via quando era miúdo, na casa de um vizinho da minha avó que tinha antena parabólica e a TVE instalada.

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Com toda esta confusão decidi, a partir de determinada altura, ler os norte-americanos em inglês, os de expressão espanhola em espanhol e todos os outros idiomas que desconheço em qualquer um destes dois mencionados ou em português. Por isso acredito que Borges, por exemplo, deve ser lido no original. De preferência, devido ao seu elevado nível de erudição e complexidade, com um bom dicionário ao lado. Ou então, como foi o meu caso, com uma namorada argentina. Apesar de —confesso— com uma namorada argentina ao lado, ler Borges ser a última coisa que me interessava fazer.

13.2.08

a minha 'the darjeeling limited'

CopyrightPDB_2005

Dezasseis horas de comboio, sozinho, no Gujarat Express a caminho de Bavnaghar.
Na hora mágica do Verão Indiano de 2005.

On ira où tu voudras, quand tu voudras /
Et on s'aimera encore, lorsque l'amour sera mort /
Toute la vie sera pareille à ce matin /
Aux couleurs de l'été indien

(L'Eté Indien, Dassin)

o empório celestial do conhecimento benevolente

Segundo Borges, numa certa enciclopédia chinesa os animais estão classificados em: 1) os que pertencem ao Imperador; 2) os embalsamados; 3) os amestrados; 4) leitões; 5) sereias; 6) fabulosos; 7) cães vadios; 8) os incluídos nesta classificação; 9) os que tremem como loucos; 10) os inumeráveis; 11) os desenhados com um finíssimo pincel de pêlo de camelo; 12) et cétera; 13) os que acabam de partir a jarra das flores; 14) os que ao longe parecem moscas.

Borges, por tudo, estará sempre nos meus cinco melhores argumentos originais.

12.2.08

roy scheider



10 Novembro 1932 - 10 Fevereiro 2008
Aos poucos, a geração de homens com ar de homem desaparece.

o melhor argumento original

Das nomeações para o Oscar® de Melhor Argumento Original a minha preferência só poderia ir para 'Juno'. Não pelo argumento em si, que claramente não é o meu favorito dos cinco, mas pelo facto de ter sido escrito por Diablo Cody, uma provocadora que antes de ser jornalista e escritora foi stripper, peep show girl, operadora de linhas eróticas e tem um blogue chamado 'Pussy Ranch'. E como ela explica, vinda de um meio católico e protegido, expor-se nua perante estranhos foi, e cito, 'como antropologia'.

O que quer que isto signifique.

8.2.08

o meu tributo

Chelsea, NYC, Feb2008. Copyright PDBChelsea, NYC, Feb2008. Copyright PDB

a Garry Winogrand.
(díptico, Chelsea, NYC, Fevereiro 2008)

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ainda a Americana

Tal como a América de Cheever está nas fotografias de Winogrand, a de Raymond Carver está nas de Stephen Shore. Enquanto alguns, mesmo na banalidade, procuram forçosamente a beleza, outros tendencialmente a recusam e destroem. Mas também há casos complexos, como Eugene O'Neill por exemplo, que faz ambas as coisas ao mesmo tempo.

meio-dia, um jogo de palavras infantil e dois gurosans

Se ontem, por tudo e por nada, estava de ressaca de Nova Iorque, hoje, por tudo o que bebi ontem, estou em Nova Iorque de ressaca.

dos exemplos

Encontro, no arquivo do piso de cima encostada a uma parede, uma moldura com uma pequena placa dourada aparafusada onde se pode ler a inscrição épica To inspire future generations of Builders and Designers around the World.

Para além da placa, a moldura está vazia.

7.2.08

onze da manhã

Hoje Nova Iorque, pela vitória dos Giants, está de ressaca. Hoje eu, por tudo e por nada, estou de ressaca de Nova Iorque.

6.2.08

the Americana landscape

Copyright Robert Frank, 'The Americans'Copyright William Eggleston

Robert Frank a preto e branco; William Eggleston a cores.

the Americana (2)

Por coincidência relacionado com o post anterior, leio noite dentro em 'The Ongoing Moment', um ensaio de Geoff Dyer sobre fotografia contemporânea norte-americana, que William Eggleston —a par de Robert Frank, Garry Winogrand e Stephen Shore entre outros— é um dos herdeiros da visão de Walker Evans que alega que tal como há poesia na ignorância pode haver beleza na vulgaridade; visão esta que Evans, apesar do seu requinte irónico, mantinha ainda de uma forma em algo suportada pela Revolução Cultural Americana do século XIX.

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Embora a década de 60 fosse a da explosão da fotografia a cores, Evans continuava a achar que esse método de representação era vazio e banal. Mas se era assim para Evans, não o era para uma nova geração de fotógrafos. E apesar de Frank, como Evans, também fotografar quase sempre a preto e branco, Egglestone e Shore entenderam que era exactamente nessa banalidade que melhor se poderia retratar a América. A América é a cores. Em 1976 Egglestone exibe no MoMA e desde então, como explica Dyer, o seu trabalho serviu de referência para temas muito para além do campo da fotografia: 'Blue Velvet', de David Lynch e 'Elephant', de Gus van Sant são por exemplo, entre outras coisas, dois tributos cinematográficos à estética de Egglestone e Shore. Estética essa que, melhor do que nenhuma outra, reflecte de forma tão fidedigna o amplo espectro da Americana.

5.2.08

william eggleston's (american) landscapes

photo by William Egglestonphoto by William Eggleston

4.2.08

the Americana

Com a minha popular máquina chinesa formato 6X6 percorro a cidade com as imagens de William Eggleston na cabeça; procuro o que ainda possa haver por aqui que ele viu noutros lugares. Entro em diners, como apple-pies, bebo milk-shakes. Deixo gorjetas debaixo de copos de vidro às cores. Fotografo excêntricos, saltimbancos, anúncios pintados em paredes de tijolo, fachadas com escadas de incêndio ferrugentas, depósitos de água nas coberturas, hotéis, fábricas abandonadas, bombas de gasolina. O dia esvai-se aos poucos; acaba-se a luz. Com a escuridão começa o rodopio de gente de bar em bar. A final da Super Bowl põe milhares na rua. Os bares enchem, a Budweiser esgota e com ela a minha dose de paciência diária para a multidão. Talvez por isso me esconda a seguir no meu boteco chinês favorito, algures na Bayard Street em Chinatown, e pelo caminho assisto à remoção, pela polícia, dos marcos de correio, caixotes do lixo, bancas de jornais; ou seja, de tudo o que nos passeios possa servir como arma de arremesso.

Amanhã, o desfile da vitória dos New York Giants trará para a rua um milhão de pessoas.

1.2.08

dos defeitos

E se há mulheres que só tendem a ver defeitos na beleza alheia e não conseguem de forma alguma esconder os resquícios do Pecado Capital da Inveja, outras há que não pretendem —nem lhes interessa o contrário— ver mais do que as qualidades. Por este grupo nutro a maior admiração e o mais elevado respeito. Revelam confiança, maturidade e fair-play. E claro está, geralmente também são giras: física ou espiritualmente. Ou com um bocado de sorte, as duas coisas juntas.

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Naturalmente, sendo homem, também tendo à partida a não ver mais do que qualidades. Escusado será dizer que no meu caso, sendo homem, isso é quase sempre um enorme defeito.