24.7.09

Alinho os rolos, a Hasselblad, o par de livros, a muda de roupa. Verifico os documentos, o estojo dos lápis, o caderno de bolso, o bilhete de avião. Novos ciclos começam assim. Com uma partida. Porque a seguir a uma partida há sempre uma chegada. E chegar é começar de novo.

os pontos de vista

Quando o The Times of London publicou imagens sobre as condições dos soldados britânicos na Guerra da Crimeia (1853-1856), que envolveu entre outros os impérios Russo e Otomano, a opinião pública revoltou-se pela crueldade a que eles estavam sujeitos. Segundo o historiador Robert Leggat, foi W. Russell um dos responsáveis por essa exposição, na qual denunciava as fracas instalações médicas e o facto de os soldados não terem sido equipados com uniforme de inverno e estarem aos milhares a morrer de frio. Devido à impressão de horror causada pelo trabalho cru de Russell, o Estado, através do editor do benevolente Illustrated London News, convocou o fotógrafo-estrela da época a registar também a Guerra da Crimeia; mas sob outro ponto de vista. Roger Fenton, de seu nome, era essencialmente um pictórico — de paisagem e retrato temático — fundador da Photographic Society e fotógrafo oficial do British Museum. O seu registo ficou conhecido como um dos primeiros trabalhos de fotografia de guerra, sobrepondo-se em fama ao de Russell, mas a verdade é que esteve sempre muito mais interessado em fotografar a vida social nos acampamentos do que os confrontos (há que ter em conta as insuficiências técnicas da época) ou os resultados destes últimos no campo de batalha. Na sua galeria de imagens vemos poses encenadas de grupos de oficiais, como se continuassem num qualquer clube de cavalheiros na terra-natal em tarde de cricket. Para além das condicionantes da encomenda política, Fenton fê-lo também com um objectivo comercial, pois fotografias grotescas e violentas dificilmente seriam vendidas, na exposição agendada para o seu regresso, à burguesia vitoriana. Através de Fenton, parece que a Guerra da Crimeia foi para os seus intervenientes um cândido passeio no campo, aventuroso como uma tarde de caça. Ou, nas palavras de Gisèle Freund no seu 'Photographie et Societe', uma grande «farra».

Tudo isto por causa da diferença dos chamados pontos de vista.

23.7.09

20.7.09

God says: thou shalt live together on the eleventh day

Conhecemo-nos num sábado à noite, convém lembrar-te, num terraço com vista para o Empire State Building. Vinhas de preto e branco e despertaste o meu interesse ainda de muito longe, quando não eras mais do que uma mancha no meio de todos aqueles desconhecidos. Eras recém-chegada e eu falei-te da América. Nessa mesma noite, depois de deixar-te no táxi e vê-lo subir a Quinta Avenida deserta, regressei a pé à pensão chinesa, abrigo temporário de uma outra crise, para que o momento continuasse ininterruptamente e visse nascer o sol detrás dos edifícios de tijolo do sujo bairro de Chinatown. Eu estava de partida da cidade, lembras-te? Queria regressar de barco, de cargueiro, numa viagem que segundo o que me explicaram demoraria duas a seis semanas. Foi exactamente na mesma tarde em que fui ao porto de Elisabeth Town que perdi o meu telemóvel com o teu número. Dias depois disse-te que afinal ficava, explicando-te o porquê da impossibilidade de partir. Saltaste para o meu colo, em êxtase, numa esquina da Sexta Avenida ao cair da noite. Manifestaste receio pelo facto de nesses dias eu dormir numa espelunca e foi num restaurante nas suas imediações que decidimos seguir a nossa própria e mitómana profecia bíblica, indo viver juntos, ao undécimo dia, para Williamsburg. As semanas correram como flechas, a chuva de Verão chegou à cidade e o meu visto de doze meses ao fim. Fui de viagem ao Canadá sem saber se voltava. Despedimo-nos nessa noite como se fosse a última mas acabei por regressar, desafiando o sistema e a minha própria clandestinidade, resultado de um momento de introspecção. Depois os dias acumularam-se em descobertas a dois e esperas solitárias e quando demos por nós estávamos já em Setembro. Fotografei-te no nosso local favorito ao pôr-do-sol. Tivemos a primeira briga e ofereci-te o primeiro presente. Quando o Obama ganhou, o mundo parou e nós com ele. Brigámos uma segunda vez, fomos ao teatro de táxi e jantámos em casa de uma amiga no Dia das Graças. Chegou Dezembro, os enfeites natalícios e a neve, deixando a cidade como uma paisagem perfeita de um bilhete-postal.

We'll always have New York.

15.7.09

da boa educação

Uma guerra para ser guerra necessita de sangue e suor; de sujidade e despudor; de saque e pilhagem. Na dos Sexos, paradoxalmente, a honradez também está por vezes presente, trazendo algum valor humanístico que produz o afastamento necessário ao fatal primitivismo da nossa espécie; ou em último caso, à barbárie. Se assim não fosse não era guerra, seria apenas massacre.

dos caprichos

Na sua peça 'The Father', ('Fadren', 1887), o neurótico-depressivo Strindberg é peremptório: Love between a man and a woman is war. Tal e qual qualquer outra guerra, a dos Sexos tão-pouco parte de um ponto de vista comum entre os intervenientes mas de uma clivagem. Por território (físico e emocional), poder ou razão. É assim justo dizer que ela não existe verdadeiramente entre homens e mulheres similares; ou se existe, como alguns o fazem passar, então será anódina e insípida; de fachada. Se olharmos para esta nova forma de guerra, criada pela Modernidade e moldada pela burguesia, compreendemos que o impacto entre aqueles que nela intervêm será proporcional ao quão antagónicos eles próprios o forem. Não que o sejam em tudo, porque nunca são, mas convém sê-lo em algo. Assim, podemos dizer que os contrastes, sejam económicos, morais, educacionais — de carácter ou carteira — são fundamentais para esta construção bélica, sobretudo se neles se produzirem dois extremos que de tão distantes acabam, como sabemos, por tocar-se. Desta forma chegamos de novo à frase a Guerra dos Sexos não existe verdadeiramente entre homens e mulheres similares. Correcto. Ela existe, isso sim, entre homens e mulheres cujas diferenças fundamentais são tão contrastantes que nos seus extremos chegam a parecer similares. Mas não o são. Caso contrario não é guerra, é apenas capricho.

Em Strindberg nunca foi guerra.

14.7.09

one given moment

Na delico-doce comédia romântica 'Forget Paris', (1995), Mickey (Billy Crystal) resume mais ou menos assim a sua relação com Ellen (Debra Winger): não estamos bem juntos, mas estamos pior separados. Simples, sincero e aparentemente irresolúvel. Acho que, a um dado momento, acabamos sempre todos por subscrever.

11.7.09

Depois de não sabermos nada dele há uns dias, destacaram-me, na qualidade de seu vizinho, para lhe fazer uma visita a casa e tentar perceber o que se estaria a passar. Aceitei, mesmo sem o conhecer muito bem, e com a morada no post-it amarelo escrito pela zelosa secretária do departamento despedi-me até ao dia seguinte com a promessa de novidades. No metro revia mentalmente a sua rua e situava a casa mais ou menos ao lado do take-away japonês onde às vezes comprava o meu jantar. Quando cheguei à porta vi que não estava enganado por aí além. Era um típico edifício de três andares, em tijolo escuro como quase todos os da vizinhança, cuja única singularidade na fachada era um autocolante em forma de uma metade de um coração, a esquerda, colado no vidro da janela. Nessa metade podia ler-se a frase 'Love is', caída assim incompleta e provocadora na minha própria distracção. Sem pensar no que seria ou deixaria de ser, toquei à campainha, esperei e notei que ao lado, no passeio, a japonesa da caixa registadora do minúsculo restaurante olhava para mim sem particular interesse enquanto fumava um cigarro. Acenei circunspecto. Não me respondeu, tal como tão-pouco o fizeram da porta. Repeti o toque, desta vez mais prolongado, igualmente sem qualquer resultado. Fi-lo ainda uma terceira vez ao mesmo tempo que esboçava um meio sorriso à japonesa desculpando-me talvez um pouco pela minha insistência. Resolvi esperar uns minutos e puxei de um cigarro. Dirigi-me a ela para lhe pedir lume e aproveitei para perguntar se conhecia um indivíduo que vivia naquele prédio e de quem eu estava à procura; um colega de trabalho, acrescentei. Descrevi-o brevemente e pareceu-me pensativa antes da resposta. Que sim, definitely, que costumava vê-lo entrar com a bicicleta e às vezes também lhe comprava algum combinado para levar para casa. Mas se o tinha visto ultimamente? Isso não, achava que não. Agradeci, atravessei a rua e tentei perceber o que se via para dentro do apartamento, no 1º andar. Nenhum movimento, nenhuma luz, e sem contar com o autocolante nenhum vislumbre do que quer que fosse. Nesse instante a japonesa acenou-me freneticamente e voltei a atravessar a rua ao seu encontro. Pelos vistos, depois de terminar a sua pausa comentou com o colega que estava alguém à procura do tipo do lado e o outro disse-lhe que ele se mudara. Mudara, perguntei, como assim? Que tinham visto há uns dias uma carrinha, uns homens a carregarem uns caixotes com ele a controlar tudo e que depois disso nunca mais apareceu. Fiquei a pensar no episódio durante a noite e na manhã seguinte contei a história na copa da empresa ao grupo da véspera. Uns ficaram surpreendidos, outros até insultados. Houve, porém, uma pessoa que ficou verdadeiramente chocada ao ponto de ter de sair repentinamente. No dia seguinte, ao chegar, reparei que a secretária não estava. A meio da tarde precisei de uns elásticos e fui vasculhar a sua prateleira de materiais. Por baixo de uma pilha de papéis azuis reconheço um autocolante em forma de uma metade de um coração, a direita, com as palavras 'the Only Answer'.

Ela apareceu uns dias depois francamente em baixo e notei posteriormente que o autocolante desaparecera da prateleira dos materiais. Nunca mais soube nenhum detalhe desta história. Eu próprio parti passado pouco tempo. Numa noite em que voltei ao take-away reparei que o autocolante da metade esquerda ainda continuava na janela do apartamento. Ao pagar, a japonesa comentou-me que a casa já tinha inquilinos novos. Deixaram o autocolante, disse eu, talvez procurem uma resposta numa outra metade. Ela sorriu, mas não percebeu do que eu estava a falar.

7.7.09

bela lugosi e malgosia bela



Bela Lugosi, o mais conhecido dos vampiros do Grande Ecrã, e a top-model polaca Malgosia Bela, uma provável e francamente apetecível vítima. Para mais uma dentada, evidentemente.

a canção de lisboa

O meu irmão mais novo já andou um ano por Coimbra em Direito e mudou-se depois para Relações Internacionais em Lisboa. Sai à noite, bebe copos, sempre que pode vai com os amigos em viagem e com a responsabilidade própria da sua idade de vez em quando lá estuda. Depois decidiu que afinal queria era Direito outra vez, desta vez em Lisboa, e nós todos que sim, que sim, fazes bem mas faz por isso. Hoje saíram as notas da Prova Nacional de História do Século XX e ao saber a sua é sinal que ele pelos vistos fez. Vinte valores, duzentos certos.

Está de Parabéns, como o Vasquinho Leitão n 'A Canção de Lisboa' (1933) que até sabia o que era o esternocleidomastoideo.

5.7.09

a educação sentimental

Num livro de História esbarro numa transcrição de um documento de 1269 que atesta que nesse ano os burgueses de Coimbra se reuniram não por força nem por engano, mas de sua livre vontade. Foi o mesmo com a sua partida, compreendi: não por força, como insinuou, nem certamente por engano, mas simplesmente de sua livre vontade. Tal e qual os burgueses de Coimbra, poderá um dia contar aos netos.

1.7.09

bar refaeli



Como explicou Choderlos de Laclos em 1783 no seu 'A Educação das Mulheres':
O rosto atrai, mas é o corpo que prende.

cinco dias

Através de um sms, sou informado pela operadora que faltam apenas cinco dias para terminar o contrato do telemóvel. Cinco dias. Cento e vinte horas. Sete mil e duzentos minutos. Nunca um prazo de uma coisa foi tão simbólico para um outro campeonato.