15.7.08

América; dez alíneas para uma viagem de 3000km

1) paisagem: nesta zona do país é verdejante e fresca, de suaves promontórios. Uma das principais actividades dos estados do Tennessee e da Virgínia é a criação de gado, a par da produção de algodão, no primeiro, e de tabaco, no caso do segundo. A paisagem revela isso mesmo. Longos pastos húmidos alternam com extensos campos de cultivo que acompanham a estrada por horas a fio. Igualmente extenso é o número de quintas que povoam a paisagem com a sua iconografia típica: a casa-mãe, o celeiro ao lado e a roda-de-vento. Tudo ao pôr-do-sol, como num quadro de Hopper.

2) urbanismo: o urbanismo das cidades norte-americanas é sempre o reconhecido, fácil e aborrecido grid-plan, no qual as ruas e avenidas se intersectam perpendicularmente originando uma quadrícula ou uma grelha urbana ortogonal. Assim ninguém se perde, o que acredito que visto nesses termos possa ser uma vantagem.

3) suburbia: numa terra de vastidão, a disposição das habitações nas zonas suburbanas não se traduz numa concentração em altura de tipologias multifamiliares, ou high-housing, mas sim na expansão territorial de tipologias unifamiliares. Este fenómeno é conhecido como Suburban Sprawl. Com base na quadrícula urbana ortogonal, referida na alínea anterior, os subúrbios estendem-se por quilómetros e quilómetros, fazendo com que a utilização do automóvel seja imprescindível ou mesmo obrigatória. É também nos subúrbios que se encontram os melhores vestígios da Americana, essa identidade tão explorada nos campos da Literatura e da Fotografia (e por vezes no cinema independente). A imagética do patriotismo e do consumismo inunda as ruas, os quintais, os autocarros escolares, as grandes superfícies comerciais e os parques de estacionamento.

4) cosmopolitismo: Tocqueville em 'De la démocratie en Amérique' já caracterizava o povo norte-americano como uma justaposição — e iminente conflito — de três diferentes raças: branca, negra, ameríndia. Quase dois séculos depois a raça índia, ou american native, tem uma percentagem insignificante na maior parte dos estados dos EUA; contudo uma outra raça — de génese ameríndia, mas diferente daquela que Tocqueville descreveu — assume-se como a terceira maior do país: a latino-americana. Actualmente cerca de 20% da população já é de expressão espanhola como a língua nativa. Apesar de esta mistura tri-racial ser claramente visível, os EUA não são um país essencialmente cosmopolita como o é a cidade de Nova Iorque, palco social onde coabitam todas as religiões e raças do mundo. Mesmo assim, no interior rural essa mistura tri-racial é também perceptível; sobretudo do ponto de vista económico, sendo quase sempre a raça indicador do presente status. As estatísticas apontam que 80% daqueles que vivem no limiar da pobreza sejam de raça negra. Isso é claro em todo o lado; cidade ou campo.

5) american owened: para os norte-americanos o termo red neck será algo como campónio. Não sendo ostensivamente ofensiva, a expressão tem mesmo assim um carácter pejorativo. Os Red Necks povoam o interior da América, têm sotaques que dão origem a escárnio e gozo e são tidos como culturalmente embaraçosos para a imagem global do Norte-Americano. Há neles também uma tendência xenófoba e racista. Xenófoba perante as hordas de emigrantes latino-americanos e racista perante os negros, obviamente, mas também em relação ao white trash, uma percentagem de brancos desempregados, párias sociais e vagabundos. A expressão 'american owened', que funciona como um rótulo, encontra-se frequentemente à beira da estrada, adjacente aos sinais de motéis, restaurantes e supermercados. No fundo, marca um território.

6) informação: a qualidade das notícias nos EUA está abaixo do nível mínimo exigido a um país democrático. Refiro-me apenas à televisão pública, pois oferece os noticiários mais merdosos que alguma vez assisti na minha vida. No espaço público, a informação que conta é negligenciada e enche-se a emissão com lixo noticioso, da escala local à global. Para informação ampla, diversificada e rigorosa há que pagar a cable tv. Também o acesso aos jornais diários de maior credibilidade é inexistente em diversas partes, estando apenas disponíveis os tablóides popularuchos. Até mesmo na cidade de Nova Iorque não é possível encontrar o NY Times nalgumas zonas do Harlem ou em Coney Island. Tudo isto demonstra que o direito e acesso a uma informação nítida está intrinsecamente ligado ao factor económico, fenómeno que origina posteriormente desinteresse e ignorância dos factos reais de uma grande percentagem da sociedade. E como as opiniões se baseiam em factos, convém que estes sejam correctos.

7) patriotismo: A América é o país dos patriotas. Nos subúrbios as bandeiras pululam de todas as janelas e alpendres. Igualmente por todo o lado se vêem autocolantes de Proud to be an American ou outros de apoio à guerra a às nossas tropas. A genérica utilização de armas de fogo por parte dos civis demonstra que tal não é apenas para "o direito à defesa pessoal, a primeira lei da Natureza" ou como "uma prevenção ao crime", como afirma a Tennessee Firearms Association, mas também para a protecção dos valores americanos: a protecção da Pátria, moral e fisicamente.

8) desperate housewives: parece-me que nos subúrbios a percentagem de mulheres consideradas domésticas é alta. Embora os seus gostos sejam discutíveis, apesar de que gostos não se discutem, as donas-de casa passeiam-se pelos supermercados arranjadas e provocadoras na sua sensualidade feminina. Algumas com os filhos, outras sozinhas, mas todas muito loiras e bronzeadas. Os subúrbios norte-americanos são o El Dorado para os apreciadores de milfs e para os jovens adultos do sexo masculino que cortam a relva nos dias de semana à tarde, enquanto os maridos delas estão a trabalhar.

9) alimentação: a maioria da disponível ao público é a das cadeias internacionais, e algumas locais, de fast-food. Os sinais a anunciar hambúrgueres, pizas, frango frito ou marisco frito a $2.99 estão espalhados repetidamente ao longo da estrada e nos centros urbanos. A oferta alimentar é barata e deplorável. Tudo vem com a (obrigatória por lei) tabela de nutrition facts, para que o consumidor tenha a noção da quantidade de calorias que ingere. Mesmo assim, este ano a América atingiu o maior número de casos de obesidade desde sempre. O plástico engorda. E em última análise faz pior que o tabaco, tal como a longo prazo as suas complicações serão mais dispendiosas ao estado.

10) geografia: todas as pessoas com quem me cruzei não sabiam onde fica Portugal. Mas também não é de estranhar. Eu próprio, antes desta viagem, também não sabia exactamente onde ficava o Tennessee, estado com quase 6 milhões de habitantes e que ocupa um território maior do que Portugal. É, como tudo na vida, uma questão de interesses; ninguém leva a mal.

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Todas as alíneas reflectem as impressões apenas dos sítios por onde passei nesta viagem: Pensilvânia, Maryland, Virgínia e Tennessee.