i own the night
'King of New York', (1990), neo-noir de Abel Ferrara, impressionou-me tanto por aspectos tão variados — do under-acting de Christopher Walken à raiva de David Caruso; ou do argumento robin hoodesco de Nicholas St. John à fotografia crua e fria de Bojan Bazelli — que tive de vê-lo duas vezes seguidas no espaço de 48 horas. E há ainda outro aspecto muito importante para esta súbita obsessão: a maneira como Abel Ferrara transporta a geografia urbana e nocturna para o processo da narrativa: a cidade não é apenas o cenário, ou o background da acção, mas assume-se como outro protagonista, contando-nos mais do que aquilo que aparentemente vemos e ouvimos; através da exposição de algumas características sociais (e por conseguinte físicas) muito particulares remetentes a uma Nova Iorque que praticamente já não existe. Neste contexto da morte da cidade lêem-se nas entrelinhas duas abordagens distintas mas inseparáveis: o fim de uma moralidade aparente e o desaparecimento da Americana, o suporte quasi-ideológico de uma nação. Talvez um elemento importante seja pensar que Ferrara nasceu no Bronx e a paisagem de decadência urbana, derivada de múltiplos factores sociais, faz parte da sua memória individual.
Também no que toca à memória — e agora referindo-me à colectiva — é a Nova Iorque de Ferrara que (ainda) pulula no imaginário global. A dele e a de Paul Schrader, de Martin Scorsese, de Adrian Lyne ou até a do novato James Gray. O que é compreensível, pois uma cidade que nunca dorme que seja asséptica, impoluta e cândida não interessa a ninguém. Ou não interessa, pelo menos, a mim.
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