27.2.09

Os pregões da modernidade, anunciando butano ao invés de peixe, acordam-me ao ecoar pelas ruas estreitas. Pelas nesgas da gelosia identifico os responsáveis, jovens indianos que percorrem os labirínticos quarteirões vendendo bilhas de gás. Gosto de manhãs e as daqui sobretudo pela sua luz, que em dias generosos como o de hoje atravessa o casco antiguo e se perde lentamente pelas promíscuas fachadas de pedra chegando ao chão em vítreos reflexos dourados. As vizinhas da frente ainda dormem, de persianas abertas que deixam entrever os seus corpos enrolados em lençóis claros. Ducho-me numa casa de banho com vista para um pátio interior carregado de varandas decoradas com roupa estendida, máquinas de lavar ferrugentas, cães de porcelana e gatos de carne e osso, bicicletas, velhas com toucas no cabelo e uma jovem escandinava que rega vasos de cannabis antes de ir trabalhar. O pão fresco vende-se na esquina do carrer Montcada. Pão de Pagés, o único que por aqui é verdadeiramente digno do nome de Corpo de Deus. Entre as apertadas ruas a caminho da padaria cruzo-me uma vez por outra com algum casal de turistas que se aventurou para cá do Museu Picasso, este território medieval e enigmático que alberga ainda os despojos da noite e dos vícios obscuros, nossos e de outros tempos, e de onde as putas africanas há poucas horas largaram o seu habitual turno de sedução.