28.2.10

tsuma

Na fila em hora-de-ponta, entre a chuva e o cair da noite, reparo na carrinha parada à minha esquerda. Um homem com óculos fundo-de-garrafa gesticula fortemente ao volante. Uma mulher asiática no banco do lado escuta-o. Apenas os dois, sozinhos, na casa dos cinquenta. Filtrado pela água que escorre pelos vidros de ambos os carros, fixo-me nos gestos dum e nas expressões doutro. Não há agressividade alguma nele, apenas veemência. Nela, há uma concordância displicente, quase automatizada. Um ser em modo contínuo, tomo nota mentalmente. O trânsito continua parado e o homem o seu discurso. Abro um pouco a minha janela ao ponto de a chuva entrar descaradamente e sem aviso. A mulher volta-se e olha-me directamente por trás do seu vidro. Fecha então os olhos e encosta a cabeça ao banco, como um abandono de si mesma, uma derrota. A fila move-se, o carro arranca devagar, suave, o homem concentra-se no avanço e cala-se. Eu fico ainda parado, com o rosto da mulher asiática por breves momentos impresso no meu olhar como uma gravura exótica. A sua expressão de cansaço e desistência levou-me para um lugar familiar. Ali, no meio do trânsito, um inesperado encontro com uma heroína de Naruse.