26.8.10

desperate hours

'Desperate Hours' (1955), de William Wyler

Tensão, família, uma arma e a possibilidade de morte.
É Wyler, mas também poderia ser Ibsen.

25.8.10

pauline et tous les autres à la plage

Eu escrevia para ti mas tu escrevias para um outro, esse outro escrevia para uma terceira que por sua vez escrevia para mim. Como naquele filme do Rohmer: era Verão, estava de praia e andavam todos um furo ao lado.

la vie portable

Assim ficaram, como Duchamp, com a sua própria boîte-en-valise. Com uma diferença fundamental. Duchamp reunira nelas reproduções do seu trabalho passado, eles fizeram-no com promessas originais de um projecto futuro.

24.8.10

gray's anatomy, ibsen's radiography

O teatro de Ibsen está para a familiar vida burguesa da Modernidade como os estudos do anatomista inglês e seu contemporâneo Henry Gray estão para o corpo humano. Disseca a fundo para ilustrar em várias camadas. Caracteres no lugar de ossos, medos no lugar de músculos, tensões no lugar de tendões.

19.8.10

à bout de souffle

Massenet tocou hoje pela última vez na mansarda de Godard. Belmondo por lá ficou, a ouvi-lo, de chapéu a um canto e cigarro na boca, só, a imaginar a vida, valsa e fuga com Jean. Que, por sua vez, desta vez partiu de vez.

you were wearing my nerd glasses that night

Usavas os meus óculos de nerd nessa noite. Enquanto bebíamos copos nos bares de putas que Tanner filmara tantos anos antes de nós. Éramos cúmplices de estrada e desejo, unidos na desgraça do abandono da fé nos outros e da crença em nós próprios. Lado a lado no balcão, olhávamo-nos olhos nos olhos pelo espelho à nossa frente, camuflado por garrafas e autocolantes, patinado por décadas de noitadas, fumo espesso de tabaco preto e reflexos de desilusões esquecidas em tragos de whisky barato. Depois dançámos no vazio, perante a torpe e escassa assistência, desinteressada da vida, de mim e de ti, até a noite passar e a porta da rua se abrir, deixando antever a passagem dos fornecedores matinais, dos últimos bêbados, do primeiro eléctrico. Lembro-me do teu olhar em mim enquanto rodopiávamos —volta após volta após volta após volta— atingindo o momento em que os pontos de luz se tornam linhas multicolores, rápidas e vertiginosas. Sorrias, embriagada pelo delíquio e pela tua paixão pela queda, perigosa e mortal, inconsciente, agarrada ao meu pescoço num abraço visceral. Eu, a rocha, tu o pássaro perdido que nela pousa. Perguntaste-me quando foi que eu soube. Pois bem, foi aqui. Exactamente aqui.

16.8.10

pax romana

Como escreveu Tácito, o historiador romano, uma má paz é ainda pior do que a guerra.
Não concordo, mas há dias em que percebo bem o que ele queria dizer.

o seu duplo perene

Jaclyn Smith

zero oitocentos e oito

Uma colecção de ferramentas é uma coisa de homens. Geralmente começa com uma oferta depois da quarta classe, uma espécie de ritual iniciático: toma lá este kit de cinco peças e agora estás por tua conta. O resto faz-se ao longo da vida; não se compra tudo numa ida-expresso a uma grande superfície especializada. Como em todas as colecções práticas e livres de espírito, as aquisições não têm propriamente uma regra. Uns utensílios compram-se porque fazem falta, outros porque podem vir a fazer e outros porque com o avanço da tecnologia talvez venham a desaparecer. A importância dos artefactos e a responsabilidade da sua utilização é passada de geração em geração e explicada pelos avôs como a Bíblia o é pelas avós. Assim, aos quinze anos já sabemos que com Deus e uma caixa de ferramentas um homem é capaz de mudar o mundo. Isto apenas para nos trintas descobrirmos que não é totalmente verdade. Como pode um homem mudar o mundo se não consegue sequer arranjar um frigorífico? As Páginas Amarelas deram resposta. No capítulo 'assistência técnica 24 horas por dia'.
Nefretiri: I'll believe anything you want me to believe.
Moses: Love cannot drown truth, Nefretiri.

'The Ten Commandments' (1956), de Cecil B. DeMille.

Para Moisés, a verdade é mais importante do que tudo o resto.
Do que o conforto, o poder, a riqueza e mesmo o amor.

11.8.10

detalhe de um acto de desespero

detalhe de 'Saturno devorando a su hijo', de Francisco Goya

Crono (ou Saturno, na versão latina) fora avisado: um dos filhos cresceria e acabaria por derrotá-lo. Por pavor, o titã comeu-os um a um. Excepto Zeus, que ajudado pelo destino, pelos Ciclopes e pelos irmãos —mais tarde regurgitados por Crono— veio a cumprir a profecia. Olhando para a expressão no seu rosto, apercebemo-nos que Goya compreendeu Crono. O seu olhar não é de cólera ou de ódio, (como em Rubens cerca de 150 anos antes), sugestivo da violência e crueldade do acto. Sobressai nele antes o desespero e o temor. Apesar de o sabermos capaz de barbaridades como a mutilação genital do pai, Crono não mata aqui os seus por dá cá aquela palha. Antes julga salvar-se dominado por um instintivo e hediondo sentimento de sobrevivência. Nele, como em muitos outros, o medo é superior ao amor. Geralmente isso dá merda.

en passant

Se Camus chamou a Sísifo no seu castigo o proletariado dos Deuses, Crono, o mutilador, será a burguesia da Hipermodernidade: faz antes que te façam a ti.

6.8.10

pelo exemplo

A liderança, tal como o amor prometido, dá-se pelo exemplo. Se o exemplo não for bom, as tropas revoltam-se. Surge então o descrédito, o desrespeito, o motim e por último a deserção.