27.3.07

excuse moi

a vontade dos homens (2)

Ainda às voltas com Lipovetsky e a hipermodernidade, salta-me à vista a seguinte afirmação: "Consumir com impaciência, viajar, divertir-se, não renunciar a nada: depois das políticas do futuro radiante veio o consumo como promessa de um presente eufórico."

Na nova vontade dos homens o hedonismo não é um prazer, é uma obrigação.

26.3.07

a vontade dos homens

Enquanto decorriam os ensaios para 'O Sonho', de Strindberg, Ingmar Bergman e os seus actores foram surpreendidos com a notícia do assassinato do primeiro-ministro sueco Olof Palme. Na consternação generalizada pensaram que o mais sensato seria suspender o ensaio (e posteriormente a peça) até data indefinida. Antes da concordância geral uma jovem actriz mostra um novo ponto de vista: havia que continuar o ensaio e estrear a peça. Quem matou Palme buscava o caos e o grupo ao suspender a sua actividade estava a contribuir para esse propósito. E depois acrescentou: "o importante neste momento não são os efémeros sentimentos privados. Passe o que passe, não deve ganhar o caos."

Os efémeros sentimentos privados não contaram, o Caos não ganhou e a peça dois meses mais tarde estreou.
Foi um fracasso.

24.3.07

a vontade de Deus (3)



Por vezes, na ténue fronteira entre ambas, a vontade de Deus e a vontade do Homem coincidem.

a vontade de Deus (2)

Como Bach perante a tragédia familiar, também eles pediram a Deus que, apesar de tudo, não lhes levasse a alegria de viver. Deus, ao contrário de Bach, não lhes fez a vontade. A Deus deu-Lhe igual ao litro.

a vontade de Deus

Johan Sebastian Bach, ao regressar de uma viagem pelo estrangeiro, depara-se com a notícia da morte súbita da sua mulher e de um dos sete filhos. Num acto de desespero, ajoelha-se e pede a Deus que não lhe tire a alegria de viver. No ano seguinte conheceu Anna, uma soprano dezassete anos mais jovem com a qual casou. Desse casamento teve treze filhos mais.
A Bach, Deus escutou-o. Mais do que isso: apaparicou-o.

23.3.07

à porta da minha casa, do outro lado da rua, estava hoje de manhã um homem caído no chão e empapado em sangue.

Gemia; e como um animal ferido tentava violentamente libertar-se de um grupo de transeuntes que o mantinha imobilizado. Não sei porque o faziam, calculo que para o impedir de cometer alguma imprudência; parecia estar em estado de choque, caíra da bicicleta com o rosto no chão. Levantava-se repetidamente, empurrando a todos os que o rodeavam, e voltava a cair. Havia um mar de sangue espalhado: nele, nos transeuntes, no farmacêutico do rés-do-chão, na parede, na papeleira, na calçada; em tudo e em todos. Sangue por toda a parte. A um dado instante liberta-se furiosamente e lança-se rua fora no seu grito de dor. Seguem-no a uma distância segura e todos se desviam do seu caminho. Ele cambaleia, continua a passo incerto e desaparece da minha vista. Fico mais um momento à varanda. A cidade não pára; nem o vaivém de pessoas nela. Quem não viu a cena não compreende o porquê de todo aquele sangue no chão, desviam-se e observam estranhamente a poça; há inclusivamente alguém que olha para cima à procura de algum indício. Oiço a ambulância ao fundo: pára e retoma a marcha minutos depois. Passa então debaixo da minha varanda e pela pequena janela horizontal vejo o homem lá dentro; calmo, salvo.

Chego agora a casa e já não está a poça no chão, nem o sangue na parede, nem na madeira da porta, nem na bata do farmacêutico; como se esse momento não tivesse existido. Ficam apenas estas linhas para contar a história.

o Homem hipermoderno de Gilles Lipovetsky

é levado ao consumo obsessivo numa vã tentativa de atingir a satisfação pessoal. Ontem, ao sair da livraria, senti-me vergonhosamente o perfeito retrato-robot da hipermodernidade.

para o niilista

o maior motivo para estar em forma é que o excesso de peso é a marca indelével da burguesia.
(Um agradecimento especial à Charlotte, à Sara e ao Miguel pelas referências ao novo blogue.)
(e dois dias depois também ao Miguel Marujo.)

22.3.07

the football season is over

Hunter Stockton Thompson aos 67 fartou-se e enquanto a nora e o neto jogavam na sala do lado, o seu filho lhes tirava uma fotografia e a mulher falava do ginásio com ele ao telefone, estoirou os miolos com um revólver da sua colecção de armas de fogo. O bilhete que entregara quatro dias antes à sua mulher, com o título 'The football season is over', foi entendido como a nota de suícidio:

"No More Games. No More Bombs. No More Walking. No More Fun. No More Swimming. 67. That is 17 years past 50. 17 more than I needed or wanted. Boring. I am always bitchy. No Fun — for anybody. 67. You are getting Greedy. Act your old age. Relax — This won't hurt".

sandy and agar, big sur 1961 and still life, royal biscayne, florida. ambas em 'gonzo', de hunter s. thompson

tudo o mais é supérfluo

No 'Fio da Navalha', de Somerset Maugham, surge a uma altura avançada um capítulo em que o autor refere que o leitor, se assim o entender, poderá passar directamente para o capítulo posterior sem que com isso perca algum dado importante do elo condutor da história; mas acrescenta que se não fosse por esse único capítulo não teria escrito o livro. No final pensei que era bem mais do que isso, que afinal só aquele capítulo interessava e todas as restantes trezentas páginas eram desnecessárias. Por vezes num romance, como na própria vida, são poucas as coisas que contam, tudo o mais é supérfluo.

fahrenheit 451 (2)

Quando se leva uma vida formatada, controlada e insípida há que abandonar a própria tribo. Nem que para isso, como Montag, se tenha que queimar a própria tribo.

21.3.07

fahrenheit 451

Eu, tal como Montag, renego a despótica conduta imposta e a minha cega condição de peão e recomeço do nada, a par da liberdade.

20.3.07

Hammershøi e Dreyer



No percurso de Carl th. Dreyer as referências à estética de Hammershøi cruzam-se com as suas próprias interpretações da enfatização dramática do real. O uso da luz nos cenários domésticos, o voyeurismo ao universo do quotidiano feminino e o isolamento no campo visual da personagem central são analogias facilmente reconhecíveis entre os dois dinamarqueses. Agora, e até Maio, os trabalhos de ambos estão expostos no Centro de Cultura Contemporânea de Barcelona.

shock corridor

the first cut is the deepest, ou a fatalidade da adolescência

'Não podíamos falar, tão-pouco nos atrevíamos a olhar-nos, a dor era demasiado intensa. Demos as mãos e dissemos adeus, até ao próximo Verão, quem sabe? E então deu rapidamente a volta e pôs-se a correr até casa. Regressei a Varoms pela linha férrea a pensar: Se passa um comboio agora, nada me importa que me atropele.'

em 'Lanterna Mágica', 1987
de Ingmar Bergman

19.3.07

opus magnificum

opus pistorum

miller

Em 'Opus Pistorum' Miller é frio, grosseiro e cruel mas nunca deixa de ser realista; a sua história não relata vivências ou experiências impossíveis. Absurdas, dementes e improváveis? Sem dúvida que sim, mas apenas o são aos olhos da nossa formatação moral. Neste seu livro não há lugar para o supérfluo (ou então, de outro ponto de vista, não há para mais nada que o supérfluo), apenas o animalesco e o primitivo são explorados. E vem tudo numa torrente incontrolada de força visceral; como um vómito.

18.3.07

o insuportável peso de ser uma divina merda

O título, lamentavelmente, não é meu; é do senhor Slavoj Zizek.

17.3.07

give me back my money



Eadweard Muybridge's Complete Human and Animal Locomotion.

uma mulher eufemística

nunca diz que não, diz sempre talvez.

amor entre músicos

Ela pediu-lhe um tempo, ele deu-lhe um compasso.

16.3.07

num mundo de cobardes

quem tem coragem é mal-educado.

sobre as relações humanas (2)

Barthes acusa a maioria das imagens de falta de 'punctum', essa empatia primitiva entre dois sujeitos para o bem e para o mal. Não haver 'punctum' significa a ausência de qualquer sentimento, uma total indiferença entre as partes.

sobre as relações humanas

Roland Barthes, no seu ensaio 'A Câmara Lúcida', afirma que "muitas fotografias, desgraçadamente, permanecem inertes sobre o meu olhar. E mesmo dentro daquelas que aos meus olhos têm alguma existência, a maioria não provoca em mim mais do que um interesse generalizado, ou porque não dizê-lo assim, educado."

across the nation

Dias depois volto a Raymond Carver e ao estigma obscuro das suas personagens. Num universo de desilusão e descontentamento, afinal 'De que falamos quando falamos de Amor?'.
Ninguém parece saber a resposta.

separados à nascença



'Little Miss Sunshine' de Jonathan Dayton e Valerie Faris [2006] e 'La Familia Rodante', de Pablo Trapero [2004].

closer (2)



'Sommaren med Monika'
de Ingmar Bergman (1953)

novos links no novo blogue

A Invenção de Morel, não apenas por gostar de Adolfo Bioy Casares, A Montanha Mágica, que só pelos fotogramas de 'Once Upon a Time in the West' já valia a pena a visita e ainda Sound+Vision, crítica de música e cinema por João Lopes e Nuno Galopim.
E finalmente o clássico Lauro António Apresenta.

hiper-real?


New Brighton, 1986 e Weymouth, 2006
Martin Parr

insónia

A hiper-realidade nocturna.

hiper-real e hiper-realidade

Robert Bechtle fazia de propósito. O maior intento dos hiper-realistas norte-americanos era o de que as suas fotos parecessem fotografias. A fronteira entre o real e o não-real não é explícita para o observador e nesta detalhada representação da realidade surge a dúvida sobre a sua natureza: o que observamos realmente? A hiper-realidade surge como o novo espaço onde se cruza a realidade com a ficção e a representação do real.
Seguimos depois para a caracterização que o filósofo recém-falecido Jean Baudrillard fazia da Califórnia. Ele transporta o conceito plástico da pintura para a filosofia e assim o estado californiano era uma hiper-realidade, esse espaço comum social onde a realidade e a fantasia se cruzam, deturpando a percepção e os sentidos dos seus utilizadores.

Depois do realismo americano de Andrew Wyeth, o hiper-realismo californiano de Robert Bechtle.

fotografia de rua



New York City, 1975
Joel Meyerowitz

Para o fotógrafo nova-iorquino Joel Meyerowitz, conhecido pelas suas street-photographies e pelo trabalho 'Aftermath', a composição e a significação são os objectivos fundamentais nas suas fotografias; não é a história que cada imagem conta, [como para os fotógrafos da Magnum, por exemplo], mas o seu lado estético que o preocupa. No seu livro, para todos os elementos de cada imagem Meyerowitz dá uma explicação, uma referência, um significado e por vezes até uma analogia a uma obra clássica ou religiosa. Depois, no final, Meyerowitz afirma que ao fotografar fá-lo de forma instintiva. É verdade, mas nunca um instinto foi tão controlado e rigorosamente educado.

post nº 1, start all over again



Vontade Indómita [The Fountainhead]
de King Vidor, 1949


Apago os dois primeiros 'posts' e recomeço o blogue. Depois de dois anos no Crepe, escrever num blogue com outro nome provoca-me um sentimento híbrido. Se por um lado há a ideia e excitação do 'novo', por outro há um receio pela mudança, pela perda de familiaridade. Mas esta reacção deixa-me perplexo pois não sinto isso em relação a mais nada na minha vida: vivo no estrangeiro, longe da família e dos amigos de sempre, viajo sozinho por países distantes e passo quase a totalidade do meu quotidiano com pessoas que na realidade me são perfeitamente desconhecidas [graças a Deus há excepções]. Então, ao pensar nisso, escolho um fotograma diferente do anterior para ilustrar o filme de King Vidor. Escolho 'Not Built', que antes de sequer imaginar o filme já conhecia a imagem impressa numa edição que tenho da Cinemateca intitulada 'Cinema e Arquitectura'.
Quando via a imagem pensava que a vida de um arquitecto é mesmo assim, que muitos projectos não passarão nunca do papel; outros sim, obviamente, embora isso não signifique que sejam melhores ou piores, mas que apenas estão reunidas as condições para avançarem. É uma questão de 'timing', como tudo na vida.

Por tudo isto 'not built' é a imagem adequada; e aos trinta anos assenta que nem uma luva na minha vida.