31.10.09

o conhecimento possível (2)

O mais interessante em 'Three Transitions', video-performance de 1973 de Peter Campus, é exactamente a provocação sobre a «descoberta de identidade». Nas suas transições, seja rasgando, pintando ou queimando, o «Eu» reencontra-se sempre igual a si mesmo. No fundo, em termos conceptuais, nunca mudamos, ou quando pensamos que tal acontece descobrimos que a revelação não é nada mais do que mais do mesmo. Disse-te que está em transição? Pois diz-lhe tu que vá à merda.

o conhecimento possível



Hari: Conheces-te mesmo?
Kris Kelvin: Não mais do que qualquer outro.

'Solaris', 1976, de Andrei Tarkovsky.

26.10.09

including a lot of piglets



'I originally wanted 1500 pigs for the climatic sequence of the gang fight in the middle of the [Yokosuka's] red-light district, but we ran out of money. The head of Nikkatsu [studios] was furious with me. In the event I had to make it with only 400 pigs, including a lot of piglets. I had to do the best I could within the financial restraints.'

Shohei Imamura numa entrevista a um senhor que desconheço chamado Toichi Nakata, editada num livrinho pela Cinemateca de Ontário (pág115). Como agradecimento ao Gross, por falar em Japão.

ainda do facebook

Quem sabe como a coisa funciona sabe que se pode escrever a torto a direito 'what's on your mind', como eles (quem desenha o Facebook) o põem. Resolvi então escrever, finalmente, algo que me ia pela cabeça como prova de envolvimento com a minha "comunidade". Saiu-me uma espécie de post sobre cinema japonês que não só 1) faz lá falta alguma; como 2) não tem grande interesse para ninguém. Acho que não tenho muito jeito para aquilo.

21.10.09

the lower part



O 'Twenty Thousand Streets Under the Sky' de Patrick Hamilton dá assim ares de que poderia ter servido de base referencial para alguns filmes do Shohei Imamura. Porque se pensarmos no que disse Imamura —I am interested in the relationship of the lower part of the human body and the lower part of the social structure— vemos que não é muito diferente do que fez Patrick Hamilton. Entre a atmosfera de lupanar de um e de outro deixo esta foto de Anders Petersen a ambos. É que ela também contém a relação entre a lower part das duas coisas.

a humilhação sentimental

A descoberta de 'Twenty Thousand Streets Under the Sky', numa livraria de bairro a semana passada em Londres, fez-me rever mentalmente outros ensaios sobre a humilhação sentimental. Nesta trilogia de Patrick Hamilton (1904-1962) encontramos pontos de conexão com a angústia exaustiva em 'Of Human Bondage', do seu conterrâneo e contemporâneo Somerset Maugham, com o penoso rebaixamento em 'Sonata a Kreutzer', de Leão Tolstoi, ou ainda com a raiva implodida em 'Fadren' de August Strindberg. Na Literatura, na dramaturgia ou na vida, é secular esta crueldade feminina no amor. Ou melhor, na falta dele.

20.10.09

blame reece; or yates

Costumava chegar aos Domingos muito tarde. Via o quartel mal apeava na paragem de autocarro do outro lado da praça. Geralmente tinha tempo para jantar —antes de entrar e apresentar-me ao oficial de serviço— num café de esquina e fazer tempo pela hora limite de chegada: a meia-noite. Dos outros que como eu tinham tido licença de fim-de-semana, alguns já por lá estavam. Comíamos bifes de cebolada e compartíamos com as putas do jardim em tempo de folga as imagens na televisão. Elas eram velhas, nós éramos miúdos. Elas eram «colegas» porque no exército colegas são as putas e nós éramos «camaradas» porque no exército colegas são as putas. Jogava-se à moeda por mais uma rodada. A dona do café tinha uns arrumos ao fundo que nos deixava utilizar para trocar a roupa civil pela farda. Inicialmente, aquele buraco era o nosso último reduto de liberdade para o resto da semana. Entrando no quartel a nossa identidade seria aniquilada. Tornar-nos-íamos em apenas mais um recruta, um número, um apelido quanto muito. O processo não foi longo e ao fim de dois meses a liberdade foi totalmente recuperada. Mas há coisas que ficaram para sempre. Nomes de pessoas e de terras que nunca mais escutei na vida. Em sessenta dias os pontos de vista multiplicaram-se, alianças formaram-se. Num ambiente assim não há escapes para falsos caracteres. O que cada um é vem sempre ao de cima entre o esforço físico e a privação psicológica. Ficamos sobretudo a conhecermo-nos melhor do que conhecíamos. Tivemos sorte com o tenente do nosso pelotão. Era um homem justo e exemplar como o Sgt. Reece de Yates. Com a diferença que ficou connosco até ao fim, cumprindo assim o "objectivo que é a recruta". Talvez por isso tenha tido sempre a sensação que o serviço militar obrigatório não foi na realidade uma perda de tempo. Mesmo para um miúdo com dezoito anos.

hanako



Hanako, a mais bíblica das personagens de Oshima. Em 'The Sun's Burial', o mais viscontiano dos seus filmes. Entre traições e duplas-traições ela é Dalila; num mundo onde todos os outros são irremediavelmente Sansão.

jody rolled the bones

Um narrador melancólico remete-nos, na primeira pessoa do singular, para a experiência de um pelotão formado por pós-adolescentes durante a recruta militar. Os tempos são de guerra (1944, ficamos a saber) mas como o próprio afirma esta já não é uma novidade. O que é novidade para este grupo de imberbes é a figura do sargento Reece, o responsável pela transformação de vadios em homens, máxima moral e universal do recrutamento. Reece é um homem magro, esguio e calmo — não exactamente o que se esperaria que um sargento fosse, acrescenta — e aos poucos demonstra que pode ser igualmente cruel e draconiano. Contudo, debaixo das suas ordens há um sentido de justiça que lentamente torna o inexistente entusiasmo do grupo de jovens em «cooperação». Reece consegue essa transformação pelo respeito e admiração que provoca com o seu exemplo e não pelo terror ou superioridade hierárquica que poderia exercer. He led by being excellent, é assim que o narrador coloca as coisas. Por esse «exemplo» juntam-se todos no objectivo ulterior: prepararem-se homens para a guerra. No entanto, a um dado momento, Reece é afastado para outra unidade. Quem o substitui é fraternal, companheiro, jocoso e conivente com o descrédito da instituição militar. Os quase-homens voltam a miúdos, o objectivo perde-se entre escárnio e ociosidade. Então de repente questionamo-nos como encaixa esta história em 'Eleven Kinds of Loneliness'. Uma história que relata o crescimento do sentido de camaradagem & união e um ritual de passagem no plural. O esprit des corps não é em nada relacionado com a solidão. Como resposta centramo-nos em Reece: exemplar, temível, distante, inflexível e justo para quem merece.

Quem comanda bem estará sempre invariavelmente só.

19.10.09

the man from yonkers



Encontramos nas short-stories de Yates, que se focam (maioritariamente) no período pós-guerra da exaltação do american dream, uma «suburbanidade» latente em cada linha; sem necessidade de forçar uma localização geográfica específica na narrativa ou tão-pouco de referir algum afastamento à metrópole agregadora. Esta «suburbanidade» é subliminar, cobrindo a pele de todas as personagens nos pequenos-nadas, tiques, trejeitos, comportamentos, subjectividades gramaticais e até sotaques. O mais extraordinário é que é, acima de tudo, muito contemporânea.

13.10.09

eleven kinds of loneliness

Uma das short-stories que compõem 'Eleven Kinds of Loneliness', de Richard Yates, contrapõe a sensibilidade feminina com o generalizado e conhecido «egoísmo masculino». Em 'The Best of Everything', ambiente corporate fifties nova-iorquino, acompanhamos Grace e Ralph na noite anterior à sua partida para a Pensilvânia, onde irão casar. Grace sofre um certo estado de pânico. Indecisa, questiona-se por que razão casará com Ralph. Ao fim e ao cabo, nas suas palavras, mal o conhece, sentimento de desafectação que flutua entre a impressão oposta e até compreensível de que não poderia casar com Ralph por conhecê-lo bem demais. Mas o que interessa a Yates explorar não é realmente a luta interior de Grace mas sim um determinado machismo patente na sociedade e na tradição. Grace, independentemente do conflito da sua decisão, estará sempre pronta para Ralph, o homem, ou the one who provides. Na noite em que elabora uma sedução para irem para a cama pela primeira vez, véspera da viagem e por conseguinte do casamento, Ralph descarta-a em prol dos seus amigos e da festa surpresa que estes lhe dedicaram; sabendo que no dia seguinte poderá reclamar o que já será seu «por direito». Este homem simples e simplório — "he says terlet", diz-nos ela — parece seguir uma velha máxima: o amor passa mas as amizades ficam. Assim, será sempre mais prudente e glorificante preservar a segunda em relação à primeira. A amizade, como o título sugere, é o melhor de tudo. A mulher não é mais do que um complemento lógico de uma cronologia predefinida. E Grace fica desde logo avisada: não poderá nunca contar verdadeiramente com o marido.

Casada mas sozinha; um de «onze tipos de solidão».

9.10.09

facebook (4)

facebook (3)

Não é que uma coisa seja verdadeiramente comparável com outra, ponto número um, mas entre dois mundos diferentes e que correm o risco de ser algo falsos e ilusórios, como o Facebook e a blogosfera, há algo a dizer. Tal como o primeiro, em alguns casos, é uma realidade maquilhada —mas que não deixa de ser uma «representação da realidade»— o segundo, para alguns, pode não ser mais do que uma pretensão sociocultural, uma «fantasia», uma aspiração a um outro status através da insinuação de uma realidade inexistente. Facebook e blogosfera, realidade e simulacro. Baudrillard, se fosse vivo, teria aqui muito pano para mangas.

facebook (2)

No Facebook, através dos chamados amigos dos amigos dos amigos dos amigos, dá-se a descoberta de que um ou outro tipo verdadeiramente arrogante que conhecíamos apenas de nome & de blogue não passa de uma fraca figura. Não há nada como a blogosfera para produzir falsos leões.

8.10.09

facebook



No Facebook encontram-se conhecidos de longa data que os anos e a vida separaram. Mas, para além destes mesmos anos, há algo de diferente em muitos deles. O 'Macaco' dos tempos de escola, por exemplo, já não é o 'Macaco' mas sim Fulano da multinacional x, de igual forma que o 'Turbo' do liceu já não é o 'Turbo' mas sim Beltrano da empresa y. No Facebook, as alcunhas — ao contrário dos diminutivos — já não existem, desapareceram com os resquícios da adolescência e o início das responsabilidades profissionais. Lá, somos todos muito adultos e sobretudo muito politicamente-correctos, porque, como é sabido, a crueldade das alcunhas é coisa de crianças.

1.10.09



COLLEC.tiff é um happening de 48 horas, um evento de arte e música colectivo à margem do circuito comercial. Começámo-lo em Fevereiro, em Barcelona, numa casa vazia e grande no Barrio del Born. As salas foram ocupadas com diversos acontecimentos, de videoarte a exposições de fotografia e live dj performances. Tivemos também a projecção do documentário 'Ada y Kabir', de Marcarena Ovalle, com a presença da realizadora e um breve Q&A.

Agora é Lisboa. Exposição colectiva comissariada por Patrícia Barreira. Live djs da nossa blogosfera: Ricardo Gross; Menina Limão & O Senhor; e outros fora dela: You can call me John; Tony Montana; e Indiecator. Há desenho, escultura, fotografia, pintura, performance, video, música "rock pop indie whatever", copos e comida vegetariana. A entrada é gratuita.

Estes Sábado e Domingo, 3 e 4 de Out., das 18h às 02h,
na Crew Hassan, Cooperativa Cultural
Rua das Portas de St Antão 159, Lisboa (
mapa).



Adenda (06.Out.2009):
A organização contabilizou em cerca de 170 o número de pessoas que passaram pelo evento durante as duas noites. Aos participantes (curadora, artistas plásticos e djs), à equipa da Crew Hassan e aos amigos, conhecidos e desconhecidos que se juntaram fica aqui o meu agradecimento público. Obrigado a todos.