29.11.12

o quinto império

Kierkegaard – que afinal não casou – dedicou alguma prosa e pensamento ao assunto. No único livro que li seu pode ler-se logo ao início o lema Shakespeareano ‘better well hanged tan will wed’. Porém, ao contrário de um Shakespeare irónico, o dinamarquês compreendia que a parte nefasta no casamento poderia vir de si. Na sua vida encontramos a prova: aos vinte e seis anos enamorou-se de Regine Olsen, de quinze, propô-la em casamento, ao qual ela disse que sim, e cerca de um ano depois cancelou, deixando-a. Durante esse período percebeu que a sua excessiva melancolia iria aniquilar a energia e a virtude intocável de Olsen. A sua verdade no amor, apetece dizer, foi o altruísmo. Por outro lado, podemos pensar que foi fraco por acreditar que não melhoraria pelo amor, o que nesta linha leva a concluir que a cobardia foi a sua pequena mentira. 

 *** 
Quanto a mim, que também reconheço no meu carácter e espírito uma certa melancolia e outros defeitos, decidi prosseguir com uma decisão que partiu de mim mas que foi recebida com felicidade, nervoso miudinho e paixão. Sabia, no entanto, que corria o risco de poder vir a corromper um lado inocente e sonhador que deveria ser conservado para sempre. Ao ter consciência de um possível embrutecimento provocado pela rudeza do meu carácter e mesmo assim avançar, a minha verdade não seria mais do que o egoísmo. Não obstante, em toda a sua ingenuidade e candura havia da mesma forma uma obscuridade que ultrapassava em muito a minha melancolia. A esse lado negro procurei levar luz, o que poderia indicar que a minha verdade fosse afinal o altruísmo. Foi nesta segunda construção que tentei enganar-me a mim mesmo. Mas logo em seguida deixei-me de coisas: essa verdade seria uma grande mentira. Como a pequena mentira do Kierkegaard foi a sua verdade.

a single page


da mente e do corpo

Faço o meu melhor tempo de sempre desde que comecei a correr no tartan do McCarren Park há quatro anos atrás. Não sei o que isto significará: se será uma melhor forma —relacionado com o físico ou um maior estoicismo relacionado com a psique. Inclino-me para a segunda.

27.11.12

o delator

Durante algum tempo confundi pobreza de carácter com pobreza de espírito. Ao reajustar as definições reparo que fui o maior delator de mim próprio e, como muitos deles, falso, injusto e manipulador.

Que o delator acabe na guilhotina.

the extra mile

No jogging há sempre um momento em que o esforço aparenta ser insuportável para o corpo mas a mente tem a capacidade de ainda o prolongar sem entrar em batotas e subterfúgios. No jogging, como em tantas outras coisas, o carácter afinal conta.

25.11.12

a alegoria do vazio (2)



James Turrell's "Roden Crater" (1979-2011), Arizona, US.

23.11.12

A city of virtue.
A scenario for falsehood. A stage for failure.
An imaginary landscape of old ideas.
The Roman Empire sets its values and dogmas again.
Only for its consequent fall; consequent disaster.
"Everybody knows the battle was fixed".
Except the fighter. Except the soldier. Except myself.

17.11.12

the first of the gang to die

Vejo o camião que vem a larga velocidade à minha direita apanhar-me pelo flanco. Oiço ainda o chiar dos travões, o baque seco da colisão, o esmagamento dos ossos e o tecido muscular rasgar-se em pedaços pelos pneus robustos. Continuo a atravessar a rua e do passeio olho para a cena com calma. Transeuntes gritam em terror, o condutor está boquiaberto e apático, com um olhar incrédulo para o meu corpo desfeito como uma boneca de trapos. Ninguém sabe o que fazer e penso que talvez seja melhor eu pedir a alguém que chame uma ambulância para ir recolher aquela massa inerte transformada em cadáver. Observo com atenção e vejo que não é preciso preocupar-me. Uma mulher de meia-idade está já de telemóvel na mão a reclamar ajuda. Umas adolescentes choram e o senhor indiano da mercearia anda aos círculos, em transe, talvez por conhecer-me há muito tempo e estar em choque com o sucedido. Reparo que a minha carteira está a uns metros do corpo. Pergunto-me quem a levará, se os paramédicos a recolherão para a colocar num saco de plástico transparente ou não. Foi nesta mesma esquina que há uns meses uma senhora idosa escorregou e ficou imóvel no chão. Da minha casa ouvi o alarido das pessoas que a ajudavam e levei uma pequena manta para lhe colocarem debaixo da cabeça. Essa manta foi com ela na maca quando a levaram e eu nunca a recuperei nem interesse tive nisso. Estou nesse mesmo ponto que estava há uns meses quando a ambulância chega e vejo os paramédicos dirigirem-se ao meu corpo da mesma forma que se dirigiram ao da senhora idosa. As pessoas são agora muitas que se amontoam para ver de perto um morto. O óbito é declarado no local e enfiam o meu cadáver num saco preto. A carteira é recolhida num outro, transparente. A ambulância parte, os transeuntes dispersam em sussurros. Volto para casa a pensar no ocorrido. Disseste-me um dia que eu teria de morrer para nascer de novo. Parece-me que foi o que aconteceu.

3.11.12

the aftermath (2)

Foi dessa forma, sem querer ou pensar muito no assunto, que de repente me vi arrastado pela metrópole escura e vazia ou pelo menos pela parte dela que está nessas condições e que por três dias consecutivos esperei que a noite caísse para voltar a cruzar a ponte em tão solitárias incursões nocturnas, de bicicleta e câmara de grande formato, com um saco do tripé que ecoa ao de uma carabina, artilhado como um mercenário errante, sem grande rumo ou objectivo pessoal conhecido de antemão, apenas o de deambular e tirar chapas, que levam o seu tempo a montar o equipamento, a medir a luz ou a falta dela, a focar a lente, a ajustar a perspectiva, guiado pelo luar que escapa entre as nuvens espessas que cobrem a cidade, e só deixar-me voltar a casa, deixar-me a voltar a cruzar a ponte, depois dessa necessidade intrínseca e noctívaga satisfeita como uma amante exigente, voltar a casa, dizia eu, de rastos, com o peso adicional do cansaço às costas, para cair vestido na cama e só dar conta de mim mesmo nas primeiras horas da luz da manhã.