28.2.10

on jogging (02)

No limite da minha corrida — um pontão em madeira e ferro em frente ao Tejo — apercebo-me de uma mensagem escrita, por alguém anónimo, a corrector branco nas tábuas molhadas: Estive aqui e não apareceste, datada de 22 de Fevereiro. Testemunhando um desencontro de amantes, regressei a pensar que este foi o meu jogging mais stendhaliano de todos os tempos.

on jogging

Muitas coisas na vida deveriam ser como no jogging. Correr até ao limite, até não ser francamente possível ir mais longe. Depois o regresso logo se vê.

No meu caso foi de muletas.

tsuma

Na fila em hora-de-ponta, entre a chuva e o cair da noite, reparo na carrinha parada à minha esquerda. Um homem com óculos fundo-de-garrafa gesticula fortemente ao volante. Uma mulher asiática no banco do lado escuta-o. Apenas os dois, sozinhos, na casa dos cinquenta. Filtrado pela água que escorre pelos vidros de ambos os carros, fixo-me nos gestos dum e nas expressões doutro. Não há agressividade alguma nele, apenas veemência. Nela, há uma concordância displicente, quase automatizada. Um ser em modo contínuo, tomo nota mentalmente. O trânsito continua parado e o homem o seu discurso. Abro um pouco a minha janela ao ponto de a chuva entrar descaradamente e sem aviso. A mulher volta-se e olha-me directamente por trás do seu vidro. Fecha então os olhos e encosta a cabeça ao banco, como um abandono de si mesma, uma derrota. A fila move-se, o carro arranca devagar, suave, o homem concentra-se no avanço e cala-se. Eu fico ainda parado, com o rosto da mulher asiática por breves momentos impresso no meu olhar como uma gravura exótica. A sua expressão de cansaço e desistência levou-me para um lugar familiar. Ali, no meio do trânsito, um inesperado encontro com uma heroína de Naruse.

fim de semana com kieslowski

O fio condutor das três narrativas de 'Trois Couleurs', [Bleu, Blanc et Rouge] (1993/4) de Krzysztof Kieslowski, ultrapassa o óbvio da traição amorosa em contornos distintos: a descoberta póstuma em 'Bleu', a humilhação física em 'Blanc' e a angústia do passado em 'Rouge'. Em todas elas há um desencantamento generalizado da parte de um dos protagonistas que compõem a história; da parte dos traídos, como seria de esperar. O jogo de Kieslowski começa exactamente no confronto de estas personagens desiludidas, descrentes e amarguradas com outras igualmente decepcionadas mas ainda com uma reconhecida capacidade de resistência. Neste frente-a-frente, por vezes chantagista, por vezes provocador, voltam a recuperar inconscientemente o ânimo e a vontade: seja pela benevolência, pela vingança ou pela expiação. A catarse, ensina-nos Kieslowski, é também camaleónica e multifacetada.

25.2.10

Fotograma de 'Naked youth', de Nagisa Oshima

19.2.10

Estávamos em 2005, no Inverno do meu descontentamento e a meio do Verão Indiano. Aterrei em Mumbai de madrugada e sem nada marcado apanhei um rick-shaw para me levar para algum ponto da cidade afastado do centro. Largou-me trinta minutos depois à porta de uma pensão. Os passeios estavam cobertos de homens e mulheres a dormir, enroscados uns sobre os outros; havia cães, também. O meu quarto tinha como janela uma gelosia quebrada e dela percebia o silêncio da rua e da noite. Adormeci enrolado num lençol como se fosse uma mortalha egípcia, esquecendo-me assim dos mosquitos e das ratazanas que se faziam sentir. Quando acordei, com a azáfama urbana, defini o mais próximo de um programa para os dias seguintes. Fotografar Darukhana — os homens e os barcos — e seguir depois para noroeste em direcção ao Paquistão, numa viagem de 16 horas de comboio até Ahmadabad, no estado do Gujurat. Dali logo veria o que fazer. Instalei-me num hotel muçulmano com ventoinha e calcorreei a cidade de uma ponta à outra. Os dias passaram e as fotografias começavam a contar uma história. Uma vez em Ahmadabad, segui de autocarro para Bhavnagar, povoação distante com sabor a pó. Estava a menos de 50 quilómetros de um dos meus destinos principais: os estaleiros de shipbreaking. Os dias seguintes foram passados entre lentas manobras burocráticas para conseguir uma autorização para os visitar. Fechavam-se portas; mais do que se abriam. Mudei-me para outra povoação, mais a sul. Quando adoeci, estava alojado na única pensão da terriola, misto de hotel e bordel. A noite foi de um horror solitário, entre vómitos e velhos fantasmas, acompanhado unicamente com o barulho das putas e dos clientes no corredor. Quarenta horas depois estava numa cama do Brittish Hospital, em Goa, chegado mais morto que vivo. Por lá fiquei os oito dias seguintes, a soro e delírios, até à lenta recuperação da tão esperada independência. Depois, nas praias do sul, convalesci. Ao ponto de sentir-me novamente capaz de viajar e voar. Para o Bangladesh. Em Dhaka tinha um amigo, e esse amigo, sendo muçulmano, fez com que todos os seus amigos fossem meus amigos também. Falou-me da sua cultura e anos mais tarde convidou-me para o casamento. Não pude ir, mas nesses dias fui pela costa, atravessando um país de água, outra vez à procura dos barcos desossados e das suas carcaças que marcam o território. Fotografei-os nas proximidades de Chittagong. Ao segundo dia o grupo terrorista Jama'atul Mujahideen Bangladesh fez explodir bombas pela cidade. Regressei à Índia e de lá para cá, pensando agora que a viagem valeu apenas o que valeu. Dos slides que voltaram comigo, escolheram-se dez. Expostos agora em grande formato no Museu do Oriente até dia 4 de Abril. A inauguração é hoje, dia 19 às 18.30h.

11.2.10



«Pois», diria Maynard.

about justice

Um «pormenor desolador» é perceber que os pequenos defeitos que cada um traz se tornaram responsáveis, aos olhos de quem lhe interessa, por uma certa ostracização sentimental. Principalmente quando são exactamente os pequenos defeitos — desses mesmos que lhe interessam — a fonte do seu maior encanto. Nunca ninguém disse que a vida iria ser justa.

victus et invictus

O ano do Campeonato do Mundo de Rugby na África do Sul — o do filme de Eastwood — coincidiu com o ano do Campeonato do Mundo de Rugby Júnior na Roménia. Ambos foram em 1995. Eu, na altura júnior, estive presente em Bucareste ao serviço das Cinco Quinas. Jogámos três jogos, perdemos três jogos: Itália - Portugal (34-10); Uruguai -Portugal (17-12); e ainda País-de-Gales - Portugal (que a lista não menciona mas que sei na pele que, apesar de ao intervalo estarmos a ganhar por 14-qualquer coisa, perdemos igualmente). Nesse ano, tal como os seniores, o campeão do mundo de Rugby Júnior foi a África do Sul. Face à Argentina, se não estou em erro, num jogo ao final de uma tarde de Abril. Invencíveis, uns; vencidos, outros. A lenga-lenga do costume.

8.2.10

our man in town



McShade fez-me voltar a Chandler.
Maynard a Marlowe.
E todos juntos a Dexter Gordon.

**
Talvez ainda dos tempos daquela Paris das entre-guerras, onde os artistas se misturavam com as putas, as aristocratas fodiam com os negros, os alienados se afundavam nas casas de ópio chinesas e os escritores norte-americanos viviam embriagados pela vie maudite; da Paris onde o jazz à noite renascia o homem primitivo e sexual que durante o dia vivia camuflado na moralité de la bourgeoisie; da Paris onde todos passavam pela Rive Gauche querendo mais do que o dinheiro podia comprar. Talvez ainda dos tempos daquela Paris que no dia da vitória dos Aliados testemunhou nas suas ruas o amor entre desconhecidos, intoxicados pela felicidade e pela joie-de-vivre, e onde mulheres se entregaram a homens em becos húmidos em troca de beijos mal-pagos e gemidos apressados. Talvez ainda dos tempos daquela Paris, poderia pensar. Mas não, 'Our Man in Paris' foi gravado em 1963.
Eddie Piano: É por isso que você prefere a solidão?
Peter Maynard: Muitas vezes, um só já é demais. Já há suficientes contradições numa só pessoa.

6.2.10

o que diz rimbaud



'Voici les temps des assassins.'

a soldo

Uma pena que Jean-Pierre Melville nunca tenha lido Dennis McShade. O estilismo e minimalismo do 'Samouraï' aliado à erudição e introspecção de Peter Maynard teria dado seguramente o meu profissional favorito de todos os tempos. Assim sendo, o cinismo do mulherengo Tiger Mann continuara à frente de todos os demais.

a midnight valium for a good night's sleep

A primeira vez que tomei contacto com os versos de Arthur Symons (1865-1945), the gas-light poet, foi no final da adolescência através do 'Lobo do Mar' de Jack London, pela colecção de bolso Europa-América. A um dado momento, van Weyden, o escritor-náufrago feito refém, exclama o seu amor pela também náufraga e poetisa Maud Brewster. As palavras de Symons, conta-nos, vieram-lhe à cabeça quando a conheceu — e transcreve-as. Essa frase de Symons ficou na minha memória e serviu-me de muleta nos anos que se seguiram — os anos da pretensa sedução nocturna própria da idade. Usei-a ao ponto de deixar de fazer sentido, de não ser mais do que uma articulação fonética que procurava provocar uma qualquer reacção. O princípio da idade adulta passou e eu deixei de proferi-la, ganhando juízo e refinando o gosto. Mais tarde voltei a ela apenas uma vez, acreditando plenamente que faria sentido. Mas soou-me oca e pirosa; e meses depois revelou-se apócrifa. Foi então que deixei de acreditar nas palavras ditas. Todas as combinações me pareciam chavões; ou pior: pregões. Tornei-me aos poucos num homem calado, preferindo as acções às palavras, os gestos aos sons, as insinuações às declarações. Foi a pesada herança de um provocado descrédito. Que me tornou em Sísifo, carregando às costas para a Eternidade uma suposta máscara de desafectação. Mea culpa, unicamente. Ou de Symons, desculpo-me por vezes.

5.2.10

ma nuit chez maud (detalhe)



Rohmer, entre considerações teológicas, filosóficas e de cama, onde o detalhe do plano contém quase sempre mais força que a sua totalidade. Como em muitas pessoas, nas quais os seus detalhes superam e ofuscam o todo; e cujo o «todo», na verdade, nem é digno de mencionar.

4.2.10

rohmer redux

Numa certa perspectiva, Rohmer terá apreciado Choderlos de Laclos.
As suas relações e ligações inocentes foram sempre e acima de tudo muito «perigosas».

the only reason (réaction en chaîne 2)

'[...] the only reason I fucked L. is because you fucked Z. and then I fucked R. and you fucked N. But I think of you constantly. [...] I'd call it love, and so you fucked C. and then before I move you fucked W., so then I had to fuck D. But I think of you constantly.'

C. Bukowski, em 'Play the Piano Drunk Like a Percussion Instrument Until the Fingers Begin to Bleed a Bit', 1970-79 (pag 81).

2.2.10

réaction en chaîne

fotograma de 'pauline a la plage', de eric rohmer

A. gosta de B. que gosta de C. que gosta de D. que gosta de A.
Nunca uma homenagem a Rohmer será despropositada.

1.2.10

conte d'été



Morreu há três semanas o homem que em 1996 filmou o meu verão de '94. Eu, francamente descuidado, ainda nem lhe dediquei umas breves linhas. Não tanto pelo meu interesse na sua capacidade de dissecar os medos e tensões nas relações entre os sexos. Ou por explorar temas que se tornaram banais como a fidelidade e a sedução — e que fizeram parte dos seus célebres contos. Mas pela simples razão de ter filmado o final da inocência na adolescência. As complicações do mundo adulto estavam lá, certo, contudo apenas como qualquer outra parte do décor. Não era isso que contava verdadeiramente; ou pelo menos não foi isso que contou verdadeiramente para mim.

Gelsenkirchen, 1976

Num knock-out, a vida arrumou-me para a periferia.
Carver e Bukowski mais do que nunca. Mais do que nunca na própria pele.

da crise

Explicam-nos na televisão que a crise ainda não acabou.
Confirma-se. Neste blogue tão-pouco.