31.3.08

a Ásia

asia argento, italiana (1975) maggie cheung, chinesa (1964)

em Olivier Assayas.

o aviso

upon your darkened red mouth wild birds scream / and bowls of fish swim their jungles, / a China morning, a withered moon of axes and witches; / you desire a man-plagued sun and strands of fiber calling my name; / beware, I am not your silly husband, / I am your silly lover / and of all your silly lovers, / the last one here.

'warning', de Charles Bukowski.

28.3.08

fuckin' nasty

Convidam-me para ver em Brooklyn um roller-derby da Gotham Girls League. Descrevem-me as regras do jogo e as motivações; os casos históricos e os truques sujos. A narradora revela-me o seu nick de patinadora demoníaca —Aunti Christ— e imagino-a com a sensual tatuagem de yakuza que lhe cobre todo o braço direito aos empurrões na pista às adversárias. O roller-derby é famoso na América. Mas só para duronas.

social

O médico assegura-me que as próximas duas semanas a antibióticos, dieta cuidada e proibição de álcool em nada afectarão a minha vida social. Depois asseguro eu ao médico que não há qualquer problema. Sem álcool não quero vida social.

27.3.08

da gastrite

Enquanto o Dr. Dhalsati dissertava sobre a Helicobacter pylori que causa a gastrite eu pensava no bairro de Darukhana, em Bombay East, onde as crianças em farrapos brincavam na terra ao lado da merda humana. Pensava nas mulheres atrás delas que se prostituem à noite na Falkland Road e cujos corpos se tornaram disformes por anos de maus-tratos, sordidez e privação. Pensava na margem do rio Mahin e nos homens que defecavam alinhados na linha de comboio indiferentes a quem passava. Pensava em toda a miséria e podridão que vi em Bombaim; sobretudo da segunda vez, na qual me aventurei arrabaldes adentro por dias a fio. No final da conversa o médico acabou por comentar que provavelmente apanhei a Helicobacter pylori na Índia. Não foi novidade para ninguém.

25.3.08



'Movies, media, and the mythology of the sixties'.
Por Jim Hoberman, meu vizinho.

23.3.08

dos amigos

É sempre bom receber a visita de amigos. Sobretudo daqueles que se estão nas tintas para o habitual périplo turístico nova-iorquino: a visita ao MoMA e ao Met, o brunch no Pastis, as lojas da Quinta Avenida, o gospel no Harlem ou ir cortar o cabelo à Greenwich Village. Ao contrário, preferem acompanhar-nos no jogging diário ao longo do East River e ver do lado de Brooklyn, iluminado pelo sol de nascente, o recorte da velha fábrica de açúcar; preferem um jogo de gamão numa decadente casa-de-chá em Chinatown; preferem o diner escuro e o carrot-cake ao restaurante no Soho com o coulant de chocolate. E acima de tudo não se importam de perder horas numa livraria de bairro. Isso são os verdadeiros amigos, aqueles que no fundo são uma extensão de nós próprios.

22.3.08



Vendo-me entusiasmado com o banlieu emprestam-me um ensaio em francês que roça o tema. O título é sugestivo, mas ao fim da oitava página ponho-o de lado e concluo que o meu actual conhecimento do idioma equivale ao que o Açorda, o meu rafeiro alentejano, possuía do alemão. Olho agora para o tecto a pensar que talvez deva deixar NY por uns tempos e vá viver para Paris. Mas nunca antes de o Outono terminar; e para isso ainda falta um bom bocado.

20.3.08

le verlan

Georges Perec foi o responsável pela criação dos diálogos de 'Série Noir' (1979) de Alain Corneau. Ao invés de decidir usar o habitual estilo hardboiled característico das traduções aos noirs made in america, Corneau confiou a Perec a utilização de um calão específico do banlieu dos anos 50/70, le verlan, que funciona com a alteração da ordem das sílabas formando palíndromos. Desta forma destacava-se do calão tradicional, l'argot, trazendo contemporaneidade e acentuando o espírito periférico, suburbano e de cintura operária.

Contudo Perec é essencialmente conhecido pela sua ligação ao grupo Oulipo e pelos seus romances lipogramáticos 'La Disparition', no qual consegue a proeza matemática de não utilizar a letra 'e' em trezentas páginas e posteriormente 'Les Revenentes', onde a única vogal utilizada é exactamente a 'e'. Não li nenhum dos dois, o que li foi este curioso detalhe acerca de Perec.

19.3.08

o noir suburbano

Patrick Dewaere

Patrick Dewaere, o protagonista de 'Série Noir' (1979) de Alain Corneau, a quem o crítico Gilbert Rochu apelidou de Bogart de banlieu.

porque a burguesia detém o poder

Muitos cineastas franceses —do pós-guerra ao Maio de 68— cresceram e viveram com uma forte influência da cultura norte-americana. Exemplo notório é obviamente Jean-Pierre Melville que alterou o apelido em homenagem ao escritor nova-iorquino. Mas há muitos mais. Alain Corneau, a par de Godard ou Truffaut, foi um deles. Em 1979 respondia provocatoriamente numa entrevista ao 'L'Avant-Scène du Cinéma' sobre a sugestão de o seu trabalho conter a tal influência da cultura americana:
'Só existe uma cultura, que é a cultura burguesa. Porque a burguesia detém o poder.'

das dores

Estar há dois dias agarrado ao estômago cheio de dores, com uma gastrite que até me levou ontem ao Downtown Hospital, faz-me finalmente descodificar a causa para o humor feminino naquela altura do mês. Assim, para a próxima vez que ouvir as repetidas queixas mensais, juro que não volto a responder vagamente enquanto continuo a ler o jornal. Palavra de canastrão.

17.3.08

gossip

Romy Schneider em 'Boccaccio70' Mia Farrow em 'Rosemary's Baby'

16.3.08

como a crise financeira afectou as relações na América

Por causa dos jantares-fora, dos presentes-surpresa & das visitas-aos-sogros-ao-cu-de-Judas, em tempos de poupança namorar sai caro. Os one-night-stand ficam mais em conta. Só custam um cosmopolitan num bar da moda e uma corrida de táxi a caminho de casa. E com um bocado de sorte, se não estiver de chuva, até dá para ir a pé e poupar mais uns tostões.

sexta-feira

O convite do museu dizia performance. Mas no fundo o evento revelou-se uma reunião femininista. Pior, uma festa de fufas. Pior, nenhuma delas gostava de homens. Pior, um grande desperdício.

o seu duplo perene

15.3.08

redenção

Compra-se. Aos molhos ou aos metros.

13.3.08

como canta Isaac Hayes

'I took you out of the ghetto, but I couldn’t take the ghetto out of you.'

da atitude

Vejo um anão na rua e apercebo-me que não conheço pessoalmente nenhum anão. Depois reparo bem nele e compreendo que conheço pessoas muito mais pequenas do que um anão.

'the road'

Desde 'The Fixer' de Bernard Malamud que não lia um livro tão pungente e angustiante na ficção americana. Nos dois, embora estruturalmente muito diferentes, assistimos a uma degradação física e mental contínua dos protagonistas mas cuja força interior, instinto de sobrevivência e perseverança —apesar da ideia de Morte e suicídio ser constante— os leva a seguir um último laivo de esperança. Pela derradeira justiça, no caso do Yakov de Malamud, pela promessa de um El Dorado, no caso do homem sem nome de McCarthy. A lição é que o sacrifício compensa, ou não fossem ambos ficção.

9.3.08

it always rains on sunday

'It always rains on Sunday' (1947), de Robert Hamer

'The ex-barmaid, the escaped convict and the detective'.
O brit noir, no Film Forum. Amanhã, Domingo de chuva.

8.3.08

depois, o indulto

Seguindo a lógica de Borges que diz que dois é uma mera coincidência, três uma confirmação, parece-me mais claro do que nunca que se juntaram todas e pediram a Deus a vingança. E o pior de tudo, embora eu continue a persignar-me todos os dias como a minha avó me ensinou, é que acho que Ele lá em cima as ouviu.

5.3.08

o que se esquece

"Just remember that the things you put into your head are there forever, he said. You might want to think about that. / You forget some things, don't you? / Yes. You forget what you want to remember and you remember what you want to forget."

Conversa entre o pai e o filho, as personagens sem nome; em 'The Road', o road-book pós-apocalíptico de Cormac McCarthy.

4.3.08

this gun is for hire

'This Gun for Hire', dir. Frank Tuttle, USA, 1942

private eye

Dizem-me que pareço um detective privado. Penso no noir, penso na pulp, penso em Mike Hammer. E depois penso que, para um canastrão como eu, não há melhor elogio.

dois é uma mera coincidência, três uma confirmação

Borges, cego total de um olho e parcialmente de outro, descreve em 'Siete Noches' os pensamentos acerca da sua nomeação como Director da Biblioteca Nacional (e traduzo):

"Pouco a pouco fui compreendendo a estranha ironia dos acontecimentos. Sempre tinha imaginado o paraíso debaixo de uma biblioteca. Outras pessoas pensam num jardim, outras podem pensar num palácio. Ali estava eu. Era, de algum modo, o centro de novecentos mil volumes em diversos idiomas. Comprovei que apenas podia decifrar as capas e as lombadas. Então escrevi o "Poema de los Dones", que começa: Nadie rebaje a lágrima o reproche / Esta declaración de la maestría / De Dios, que con magnífica ironía / Me dio a la vez los libros y la noche. Imaginei o autor do poema Groussac, porque Groussac também foi director da Biblioteca e cego. Groussac foi mais corajoso do que eu; guardou silêncio. [...] Ignorava por aquela altura que houve outro director da Biblioteca, José Mármol, que também foi cego. Aqui aparece o número três, que fecha o círculo. Dois é uma mera coincidência, três uma confirmação."

**

Para a Charlotte, que aprecia estas coisas e que postou o 'Poema de los Dones' na íntegra há algum tempo.

2.3.08

doze palavras

Racismo. Cerca de cento e trinta anos depois de Alexis de Tocqueville denunciar em ‘De la Démocratie en Amérique’ os costumes e mentalidades em terras americanas, nomeadamente no que toca ao conflito de raças, Susan Sontag respondia ao ponto 4 de um questionário —Is white America committed to granting equality to the American Negro?— que lhe parecia claramente que não. Que uma minoria apenas, de americanos cultos e educados, sim, estaria disposta. (‘Styles of a Radical Will’, edições Picador, 1966, pag198). Entre estas duas observações, de Tocqueville a Sontag, aconteceram diversos momentos históricos e significativos na luta dos Direitos Humanos e da igualdade racial na América: por um lado a Guerra Civil, prevista por Tocqueville vinte e cinco anos antes, cujo objectivo visava (e cumpriu) o Abolicionismo global; e por outro o African-American Civil Rights Movement (1955-1968) com o qual se alcançou o célebre 'Civil Rights Act' de 1964, que proibia oficialmente a segregação e a descriminação racial. Hoje, apesar de tudo, o racismo continua numa grande percentagem dos norte-americanos; independentemente da sua raça: seja branca, preta, amarela ou castanha. Como escreveu Sontag no mesmo artigo, 'a América é um país apaixonadamente racista e que continuará a sê-lo num futuro previsível'. Quarenta anos depois, não se enganou.

**

Bukowski. Quando um homem não acredita em nada, nada tem a perder. Assim entendeu Mr. Bukowski a vida e a sociedade. Escreveu sempre sobre o que viveu: mulheres da noite e noites de whisky, apostas de cavalos e empregos de merda. Tudo fugaz, nada sério; tudo sério. Do seu alter-ego Henry Chinaski escreveu que foi o homem que nunca teve o emprego que quis e que nunca manteve o emprego que tinha. Aos 49 anos, depois de aceitarem para publicação um dos seus contos, passou a escrever a tempo inteiro. Ele mesmo disse que nessa altura tinha apenas duas opções: continuar o seu emprego nos Correios e endoidecer ou assumir-se como escritor e passar fome. Escolheu passar fome. Morreu aos 74 anos. Na sua campa está escrito 'Don't try'.

**

Noir. O género que a América criou suportada pelo êxodo do intelecto europeu e cujo termo foi cunhado pelo francês Frank Nino. O noir explora o lado obscuro da condição humana: as fragilidades de carácter, a descrença na moralidade social, a (des)lealdade nas relações pessoais. Está no cinema, na pulp-fiction e alguns até elevaram o género a Literatura. Os heróis são vilões e os vilões são heróis, com os quais se simpatiza sempre mesmo sabendo que legalmente estão do outro lado. Os que se opõem a eles são obrigatoriamente os condenáveis, mesmo que estejam do lado certo. O noir movimenta-se nesta perversidade, nesta divisão moral. E ensina sempre uma lição: o crime não compensa.

**

Não são doze, são apenas três, nem tão-pouco são as 'favoritas'. Mas mesmo assim acho que servem.
Roll the dice.