30.9.09

hyper-modernity, say it again

A hipermodernidade de Lipovetsky por aqui tão badalada torna-se ano para ano cada vez mais evidente. Permite coisas sociais extraordinárias — e ao dizermos coisas queremos dizer transformações, metas e meta-transformações — como por exemplo eu estar na casa dos trinta e ter uma mãe que vai de Erasmus. Depois, nesta hipermodernidade, hei-de ser eu a ir visitá-la à sua casa de estudante em Florença, (creio), perguntar-lhe se os vizinhos são sossegados e se a área é segura. Se precisa de tupperwares novos ou de algum edredão, se tem pimenteiro ou talheres de sobremesa. Haveremos de ir a um Ikea italiano comprar as chamadas coisas básicas para o lar, efeitos de uma propaganda igualmente hiper-moderna. Já cá, hei-de telefonar a saber se está tudo bem e oferecer-me para alguma responsabilidade acrescida como ir pagar a internet, luz ou alguma quota em vias de atraso. E hei-de, sobretudo, perguntar pelas notas, sempre muito reflectivo na resposta rápida ouvida pelo outro lado do telefone.

Não há dúvida de que se eu pensava que o cúmulo da hipermodernidade era viver em Nova Iorque por estar a viver em Nova Iorque, isto prova que estava bem enganado. Uma mãe em Erasmus é bem mais hiper-moderno.

das pequenas vinganças

Os homens, independentemente da idade, são tendencialmente desajeitados, impacientes e trapalhões nas suas tentativas de pequenas vinganças. Esta desproporção, podemos dizer, entre uma acção e um sentimento menor (pois não é uma grande vingança) é algo que não lhes é francamente natural. As mulheres não; são ligeiras e discretas, ágeis e casuais. Tanto que por vezes, aos olhos de terceiros, os seus actos de pequenas vinganças nem chegam a parecer uma «vingança» mas sim outra coisa qualquer.

«Desprezo», por exemplo. Nada mais natural.

29.9.09

delon und schneider



Primeiro rattle, depois hum.

28.9.09

rattle and hum

'The machine rattled as if there were a marble inside, anyway something loose inside, then settled to a hum.' Em 'Collectors', de R. Carver.

Geralmente, entre homens e mulheres, é tudo como o aspirador no conto de Carver: começa num rattle e acaba num hum.

27.9.09

da abstenção

Oiço toda a gente queixar-se mas pelos vistos só um pouco mais de metade votou.
Assim não dá. Assim não se queixem.

21.9.09

O casamento de Patrick Kavanagh

Não me lembro de um noivo com um olhar tão apático e desinteressado ao cortar o bolo no dia do seu casamento. Mas sabendo que o noivo é Patrick Kavanagh o fenómeno não será de estranhar. Afinal, o homem de quem disseram ter a capacidade de transformar o banal em algo significativo mostrou ter igualmente a capacidade de transformar o significativo em algo banal.

try the dog-tracks now and then

No poema 'Irish Poets Open Your Eyes', Kavanagh incita laconicamente os seus pares a arriscarem, a soltarem-se, a serem vulgares, ordinários, a pouparem para casar e até, de vez em quando, a apostarem nas corridas. Bukowski, embora não irlandês, em quase tudo seguiu o conselho.

portrait of the artist as a young farmer

Antoinette Quinn descreveu Patrick Kavanagh (1904-1967) como um homem cativante para os amigos e um monstro para os que deliberadamente repudiava. Diz ainda que a sua rudez se tornou legendária. Na verdade, foram algumas as batalhas travadas por Kavanagh: o desprezo pela elite literária de Dublin; e a aversão à falsidade do Literary Revival de John Synge e W. B. Yeats, afirmando que escritores de ascendência Protestante eram exteriores à consciência global da identidade irlandesa; não eram — ao contrário de si, católico e campesino tornado poeta — a voz do povo. Kavanagh era algo novo e genuíno para o círculo intelectual da capital e procurou sempre acentuar essa diferença com os demais escritores, geralmente pertencentes a uma burguesia bem vestida e comportada. Levou uma vida precária a todos os níveis; bebeu, insultou, apostou e acima de tudo provocou. Não obstante, devido ao realismo social da sua poesia inicial denunciante das condições da vida rural, desde cedo o seu talento foi reconhecido, tendo mais tarde recebido o epíteto de o Maior Poeta Irlandês desde Yeats. Mas o «maior» depois de alguém não é mais do que o «segundo». Não acredito que para Kavanagh isso tenha sido suficiente.

20.9.09

it's a long way to tipperary

'It's a Long, Long Way to Tipperary', musiquinha de vaudeville transformada em marcha bélica pelos soldados irlandeses do Connaught Rangers a caminho de Boulogne, na Primeira Grande Guerra, e mais tarde imortalizada no imaginário global pelos prisioneiros britânicos do 'La Grande Illusion', de Jean Renoir. É um longo caminho para Tipperary, mas em mais ou menos dez dias, mais ou menos 1300km, mais ou menos desvio lá se chegou.

in the shadows I exist

'Lavender', a Jouissance Production dentro do Dublin Theater Fringe Festival, é uma peça tecnicamente híbrida e duplamente metafórica. Numa narrativa atípica povoada de intersecções e cruzamentos cronológicos e oníricos, 'Lavender' percorre os caminhos da nostalgia e confronta o espectador com uma asfixia (termo em voga) desse mesmo percurso até ao seu colapso. Se a «nostalgia» é reforçada pela projecção multimédia nas quatro paredes da sala, a «asfixia» é personificada em palco por uma bolha plástica transparente habitada pela Infância até à sua ruptura. Em 'Lavender', o confronto com as memórias e a morte é sofrido e a sua materialização é catártica, parecendo querer gritar o velho ditado de que 'os mortos continuam vivos se a sua imagem for perpetuada'. Mesmo que sentimentalmente, mesmo como sombras; porque, como foi amplamente repetido, in the shadows I exist.

17.9.09

this is ireland (2)

Copyright Eoin O Conaill, Common Places

Nem aos mais distraídos escapam as referências a Stephen Shore por Eoin O´Conaill. Não unicamente pelo título da exposição e catálogo ('Common Place', Gallery of Photography, Dublin) mas igualmente pela abordagem conceptual do trabalho documental. O´Conaill (1979) explica que procurou registar uma Irlanda em mutação, longe dos habituais estereótipos da paisagem rural, por um lado, ou do cosmopolitismo moderno de um país bem-sucedido, por outro e mais recente. As fotografias incidem sobre uma certa banalidade urbana e foram feitas sobretudo em dois momentos do dia: ao amanhecer e ao anoitecer, metaforizando assim, nas palavras do artista, a transição entre o que desaparece e o que emerge. 'Common Place' de Eoin O´Conaill: this is Ireland. Uma sociedade nunca está devidamente representada como nos seus lugares comuns.

this is ireland

Embora tenha vivido a grande parte da sua vida adulta em Inglaterra, (emigrou depois da conclusão dos estudos no Trinity College, em Dublin), William Trevor (1928) consegue nas 1261 páginas do seu 'Collected Stories' uma radiografia sociocultural de um país complexo e em transformação: a Irlanda. Nas suas short-stories, o escritor e dramaturgo abrange diversas faixas da sociedade irlandesa (e inglesa também) através de uma galeria heterogénea de personagens e de contextos físicos & morais, desvendando uma realidade plural. Ao contrário dos norte-americanos Carver ou Cheever, igualmente de inclinação tchekoviana, que tendem a explorar segmentos sociais específicos — como a burguesia aborrecida dos subúrbios, o primeiro, ou a classe media suburbana à deriva, o segundo — Trevor amplia o seu espectro de observação percorrendo diversos cenários económicos e culturais, do cosmopolitismo urbano ao ascetismo rural, onde por vezes ressaltam os fragmentos passados de um conflito civil. Político e religioso.

Caso para dizer que as (cerca de oitenta) short-stories de William Trevor em road-trip são um excelso complemento. After all, this is Ireland.

12.9.09

Eire

Até agora, da Irlanda, posso dizer apenas uma coisa: a condução pela esquerda é de longe mais fácil do que compreender o sotaque desta gente. E aqui dá-se o paradoxo: apenas se conseguir compreender o sotaque desta gente consigo chegar ao destino rural predefinido. Mesmo pela esquerda. No fundo, em termos metodológicos, falar da Irlanda é falar de mulheres. Ou seja, a dificuldade não é a habilidade ou a prática mas sim a compreensão.

11.9.09

chabrol

O mestre da noirmalidade.

8.9.09

sete sombras



A prova de que Kurosawa e Hashimoto leram Plutarco.
(Nós agradecemos).

4.9.09

on a daily basis

Antes de Carver escrever aquilo que faz com que conheçamos realmente Carver, como por exemplo 'Cathedral' ou 'What We Talk About When We Talk About Love', há um conjunto de textos publicados sob o título 'Will you please be quiet, please?', de 1976. Nele, o autor norte-americano faz já uma incursão ao seu universo carregado de banalidade e vulgaridade quotidianas, desvendando igualmente o prenúncio daquilo que viriam a ser as suas personagens apáticas, desiludidas e pós-modernas num clima de aparente ameaça inconclusiva. Mas Carver estava ainda em formação — apetece dizer em metáfora e em inglês: Carver was still being carved — e debruça-se sobre episódios não tão banais; ou, indo mais longe, paranormais. Comparativamente ao que viriam a ser no futuro. Não obstante, deverá referir-se o seguinte: a «paranormalidade» de Carver não será a «parapsicológica» e espiritual cunhada pelos sensacionalistas dos finais do século XIX. É apenas algo para lá da normalidade. Porque, por vezes, a normalidade também se ultrapassa a si própria. Carver mostrou sabê-lo muito bem.

3.9.09

rattlesnakes et al



É interessante ver como Didion utiliza a imagem de cobras, serpentes e cascáveis como metáforas ou apenas através das descrições dos seus movimentos físicos e hábitos biológicos. Para além de fazê-lo na ficção, como é amplamente visível em 'Play it as it Lays', fá-lo da mesma forma nos ensaios político-sociais. Freud tem no seu 'Die Traumdeutung' a explicação para o fenómeno de encantamento da espécie. Compreenda-se: é que em tempos Didion já foi nova.

it was not a country under enemy siege

'It was a country of bankruptcy notices and commonplace reports of casual killings and misplaced children and abandoned homes and vandals who misspelled even the four-letter words they scrawled. Adolescents drifted from city to torn city, slouching off both the past and the future as snakes shed their skins. It was not a country in open revolution. It was not a country under enemy siege. It was the United States of America in the cold spring of 1967.'

Joan Didion, em 'Slouching Towards Bethlehem' do ano de 1968, naquele que poderá classificar-se como um inegável bom exemplo de involuntária previsão. Basta mudar-se o final para it was the United States of America in the cold spring of 2009 e bate tudo muito certo.

lei-seca

2.9.09

claude chabrol meets revista gina



Fotograma de 'Les Noces Rouges' (1973), de Claude Chabrol.
Mise-en-scène universal.

1.9.09

em agosto,

a vontade esteve acima de tudo muito sabática. Ou nem isso.
Recomecemos então.

noite de verão

O mar era visível da janela do sótão sobretudo nas noites de lua generosa. Entretinha-me a contar as ondas na rebentação como quem conta carneiros em lutas contra a insónia. Os adultos, lá em baixo, faziam-se ouvir até tarde, entre discussões exaltadas próprias dos tempos conturbados da revolução fresca e gargalhadas da sua (então) não menos fresca juventude. Os dias eram passados naquilo que me parecia um isolamento total. Não unicamente meu, mas daquele familiar grupo perante o resto do mundo. À casa e ao areal deserto não chegava vivalma nem mesmo durante o dia. Sendo a única criança, sentia-me o explorador solitário de tão virgem território. A janela do sótão era a ponte do meu barco imaginário, inspiração directa das aventuras de Salgari que nunca mais deixei. Daquele ponto controlava tudo, ou dessa forma assim o via, e por diversas vezes preferi-o à imensidão do areal. Numa noite, já relegado pela hora tardia para o meu quarto no sótão, assisti da janela aos gritos que alguns do grupo lançavam a correr em direcção à água: o mergulho da meia-noite à luz da lua. Foi nesse momento que invejei pela primeira vez a idade adulta, nunca imaginando que chegaria o dia, já adulto e também a mergulhar num mar escuro numa noite de lua cheia, em que daria tudo para voltar atrás àquele preciso momento. A infância é um bem valioso e o único verdadeiramente irrecuperável. Como a vida me viria a ensinar.

do bloco de notas

A verborreia despejada no bloco de notas, mais tarde repassada a pente fino, pode ser encarada de duas maneiras distintas: 1) antologia de um carácter solitário ou 2) breviário de um aborrecimento anunciado. Em ambas as leituras, há claramente um denominador comum. Estritamente no bloco de notas.