26.10.10

mr. shephard (1943)



O homem, o actor e sobretudo o dramaturgo.

scene four

Night. Coyotes in distance, fade, sound of typewrier in dark, crickets, candlelight in alcove, dim light kitchen, lights reveal AUSTIN at glass table typing, LEE sits across from him, foot on table, drinking beer and whiskey, the T. V. is still on sink counter, AUSTIN types for a while, then stops.

'True West' (1980), peça de Sam Shephard.

25.10.10

love is just around the corner

'Belinda's Lounge, NY, 1987'. Copyright de Anders Goldfarb

A nossa rua. Em 1987.

slouching towards something

Escolho com calma, como um ritual do género sempre pede, o primeiro livro a comprar nesta terceira aventure americaine. Prefiro a todos os restantes uma nova edição de poemas inéditos —pois da sua prosa não sou de todo grande adepto— do senhor do costume. Bukowski foi um bêbado, ordinário, mulherengo, machista, corrécio, irresponsável e putanheiro. Não é, por isso, autor que possa ser apreciado por gente decente e de bom gosto literário, pois as suas qualidades aparentemente não são extraordinárias e os seus textos não têm qualquer motivação intelectual. Não é tendencialmente autor para mulheres, pelas razões óbvias, mas tão-pouco para homens de secretária, de fato e gravata ou lenço, burgueses, académicos ou puristas. Em contrapartida, cai facilmente no goto de jovens niilistas que erradamente apenas vêem nele uma postura de conflito. Bukowski é bem mais complexo do que estas duas aproximações. Há de facto nele um sentido de luta com a vida, com ele próprio e com os demais mas há da mesma forma uma sensibilidade emocional mascarada de desilusão e desprezo. Reconheço nele a vulgaridade de Mickey Spillane, o desapontamento obscuro de Patrick Hamilton, a crueldade abjecta de Céline e algo da acidez de H. L. Mencken. Gostar de Bukowski, no meu caso, surge por empatia. Como não poderia deixar de ser.

23.10.10

como lhe explicou godard,



«une Femme est une Femme» (1961). Como lhe mostrei eu, un Homme est un Homme, (2010).

22.10.10

you and I

Esta já não é a cidade da minha memória.
É agora a cidade do nosso futuro.

21.10.10

do chá

Para Tea Party, falta-lhe muito chá.

so help you God

Quando saí de casa, para o jogging matinal, o dia não tinha ainda começado. Corri em direcção ao East River, contornando as fábricas abandonadas e os armazéns grafitados, para aparecer no McCarren Park pelo lado norte. Foi já na pista de atletismo que o sol apareceu, meio tímido pelo nevoeiro da manhã, desenhando a minha sombra nebulosa no tartan alaranjado. Nela vi a cadência da minha punição —numa série de sprints— e relembrei-me de como o esforço é quase sempre recompensado. Afinal Deus disse: faz e Eu ajudar-te-ei.

A pista estava cheia.
Ao que parece, todos procuramos algo da Sua ajuda.

williamsburg, again

Volto à minha antiga rua como se não tivessem passado dezassete meses. Tudo está na mesma, aparentemente. O louco da esquina da Bedford continua aos gritos as suas dissertações sobre guerra, paz, amor e outros mistérios do universo. O quiosque de bagels, a delistore, a loja de roupa eighties, o mexicano vendedor de tacos, o gato preguiçoso da livraria de arte, a funerária japonesa. São poucas as diferenças, para além do videoclube de cinema de autor ter fechado no pico da crise e de a minha senhoria estar agora de cabelo pintado de louro. Nada parece ter mudado. Talvez apenas eu; um pouco mais velho, um pouco mais pesado. Tiro o meu bloco quadriculado do bolso da camisa. Retomemos.

15.10.10

repare-se,

não é que eu ande de todo alheado, mas uma partida e a sua logística será sempre uma partida.
Cinco dias, marca a agenda, para tentar pôr um pouco do (meu) mundo no sítio antes de ir.

9.10.10

amarcord

fotograma de 'Amarcord', de Fellini

De Fellini. Muito da sua infância.
Um pouco da minha também.

8.10.10

ontem

De carro, sozinho, numa viagem elíptica e nocturna pela cidade da minha memória, abandonada entre o vento e a chuva, repleta de aberturas, jogos de volumes, estreitas ruas de calçada ontem molhadas e escuras, medieval. A cidade que Chirico poderia ter pintado, igualmente seca, pastelosa e carregada de nostalgia derretida em tarde desertas de Verão. Solitária, quando quer, e esguia como uma mulher que se esconde e nos baralha. Por cá estou, há oito dias, sem saber bem porquê, não tendo fundamento ou desculpa, certeza ou vontade, apenas fazendo-o sem agir, sem pensar. Talvez o refúgio entre família e amigos, desses de sempre, de infância. Talvez o chamado descanso do guerreiro antes da próxima partida. De novo, não falta muito. Nem dez dias para me pirar.

2.10.10

apontamentos soltos: agosto

A população parou num dia de Verão. A passagem de um camião de grandes dimensões pelo centro, na curva ao lado da igreja, provocou um rebuliço. Devido à sua altura excessiva ficara bloqueado pelos cabos de electricidade de alta-tensão que atravessavam a rua. As pessoas vieram às portas, conselhos foram dados. Fizeram apostas, uns; outros, recomendações. A hora era ainda a do calor mas nem isso serviu para afastar os locais. Eu no meio dos demais, em cima da minha bicicleta de moto-cross azul e branca. Estávamos perante um dilema, fiquei a saber: o camião não podia avançar sob o perigo de rebentar os fios e provocar uma catástrofe, mas tão-pouco podia andar para trás devido à impossibilidade da manobra. Veio o padre, o mesmo que me baptizou e me deu a primeira Comunhão, dar as esperadas instruções. Só há duas opções, disse do alto da sua sapiência eclesiástica: ou se esvaziam os pneus, ou se cortam os fios. Calculou-se que mesmo esvaziando os pneus, a diferença de altura não seria ainda a suficiente para garantir a passagem do camião. Do telefone da mercearia da esquina chamou-se então o piquete de emergência da Electricidade de Portugal. Na espera, abrigámo-nos na sombra esguia e fugidia ao longo das paredes. O camião ficou sozinho, na total plenitude da sua estranheza de escala, como uma carcaça esquecida de um animal pré-histórico, com os cabos entalados entre a cabine e o reboque. A senhora da mercearia, perante tanta gente por perto debaixo daquele calor de má-morte, anteviu uma boa oportunidade de negócio e instruiu o neto para vender refrigerantes frescos pela rua, acompanhado de pregão ao jeito de dia de feira. Alguns riram-se. O padre reprovou a iniciativa com o olhar, não lhe interessando prática tão histriónica à porta da Casa de Deus. Acabei por me ir embora sem acompanhar o desenrolar da acção. Voltei ao final da tarde, de passagem, pela fresca, e a normalidade tinha voltado ao local. Com uma ligeira diferença: o corte dos cabos fez com que a mercearia ficasse sem luz durante os dois dias seguintes. No sermão de Domingo, o padre falou de como Deus não compactua com ganância e oportunismo. Perguntei à minha avó o que era oportunismo.

apontamentos soltos: outubro

Costumo vir para o diner aos finais da tarde de Inverno. Gosto de ver a luz fraca a reflectir e ampliar-se pelos espelhos e cromados baços, contaminando o espaço pouco iluminado de um suave dourado. Desvio sempre a natureza-morta que compõe as mesas de fórmica azul-água: frasco de molho de tomate, boião de açúcar, saleiro, xarope de mirtilo. Coloco o livro de história em cima da mesa enquanto os ovos benedict não vêm. Consulto capítulo a capítulo com a devoção que em estudante nunca tive. Os ovos geralmente saem rápido. Mastigo sem pensar.

1.10.10

num julho não tão remoto

Passam já das duas da tarde. Movo-me lentamente para apanhar o maço de cigarros do chão ao lado da cama. A ventoinha parece imóvel, no entanto sei que tenta cumprir a sua função. Gentil como um parente de visita, o som do continuado movimento das pás vai-o comprovando. Por esta altura devem estar 99 Fahrenheit lá fora. Cá dentro um pouco menos, ou nem por isso. O meu corpo ensopado reflecte a chama brilhante do fosforo. Deixo-me ficar assim, até que o fumo me desperte do torpor. O alvoroço no corredor acalmou há horas, no momento em que os emigrantes chineses saíram para os seus turnos de vidas de merda ao longo da Bowery Ave. Vejo-os quando chego de madrugada, espalhados em camas metálicas por todos os cantos, enrolados sobre si mesmos indiferentes ao calor que se faz sentir. O frio deles é outro, de pavor e desconhecimento. Para isso, não há nada que os aqueça.

reminder

Ontem, na inauguração do surrealista português Fernando Lemos na Fundação Arpad Szenes-Vieira da Silva, encontro num dos seus desenhos A5 a frase todo o prazer é quente e a dor é fria. Tomei nota no meu caderno, como um futuro reminder em relação a ti.

teatro norueguês

Em Jon Fosse, o Jovem foi-se.