31.3.11



Richard Serra, Drawings
Work Comes Out of Work, 1976/77

diário de uma falta, downtown

Sento-me no banco voltado para os cubos pintados do Sol LeWitt de que tu tanto gostas. Relembro os teus comentários sobre as múltiplas combinações de cor por ele utilizadas e de que alguma forma preferes o seu trabalho monocromático. Sozinho, em frente da fachada de vidro que os protege, em frente do meu próprio reflexo solitário que se sobrepõe a tudo acentuando a tua falta, concordo uma vez mais contigo. Por Arte nunca discutimos, reparo; ou como colocou Adorno, love is the power to see similarity in the dissimilar.

4pm

Um homem de meia-idade, de mão dada a uma mulher, grita com entusiasmo 'We love each other'. O anúncio ecoa pelo jardim e interrompe o sossego primaveril. Algumas pessoas olham e, dessas, são poucas as que sorriem. A mulher, de olhos no chão, reprova a exaltação com um aceno de cabeça. Ela sabe que o que ele fez não foi afirmar publicamente o seu amor por ela mas sim informar publicamente o amor de um pelo outro. A diferença incomoda-a. Preferiria certamente o contrário.

28.3.11

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image copyright: Bruce Davidson

To hipsterville.

o delíquio da ausência

Regressado do Kuwait, a passagem por Lisboa e por ti foi breve, amarga e licorosa. Agora, outra vez de volta a esta cidade da qual de alguma forma nunca saio, vejo-te a meu lado em tudo o que faço e que fazíamos, em todas as ruas que percorro e que percorríamos. Revejo-te à minha espera na esquina depois das aulas com o teu sorriso inocente e feliz. Quero-te outra vez aqui, mesmo sabendo que contigo e que com o teu amor / um dia fomos maiores do que a vida, pendurámo-nos em nós próprios e corremos um mundo interior e desconhecido / paixão / fomos, dissemo-lo, os «possíveis aventureiros» e como Dédalo e Ícaro fugimos do labirinto impossível / ternura / os teus braços de calor, o meu corpo sólido de rochedo / chegará também uma quota-parte de fúria / fuga / queda / e na qual as tuas asas de cera derreterão pela surdez causada pela barreira da nossa incomunicabilidade. O que quer que seja, vem, e reza comigo ao meu deus pagão.

13.3.11

the kwt diaries (bye bye modernism)

O fenómeno que a descoberta do petróleo provocou no país (1938) deu origem a uma escalada inimaginável de desenvolvimento urbano, tecnológico e económico. Nesse primeiro momento, britânicos e outros trouxeram para o Kuwait os seus know-how e how-to. O Movimento Moderno —ícone arquitectónico avant-garde da época— veio na esteira desse dito conhecimento e o território tornou-se durante os anos 1950 a 1970 num extenso laboratório alimentado por motivo, recursos e ambições. A antiga cidade islâmica de terracota evaporou-se debaixo das estacas de betão / dos registos experimentais / dos não-assumidos «colonizadores». Não obstante, o exercício de um estilo internacional —efeito inadiável do progresso que o petróleo impulsionou— produziu resultados locais interessantes. Depois, no final dos anos 1970, surge um segundo momento: a criação de uma nova identidade global iconográfica e megalómana. Contudo, a produção do Movimento Moderno, também pelo seu cunho «colonialista», seria gradualmente posta de parte, secundarizada e apropriada pela horda de emigrantes do subcontinente indiano, no centro, ou abandonada à total degradação nas zonas residenciais. Da mesma forma que a sua escala não poderia nunca rivalizar com a da Tecnologia. E seria a tecnologia e nada mais do que ela que faria esquecer o passado e projectar o futuro. O pós-modernismo, em todas as suas vertentes excepto no pessimismo, chegou quase em tempo real ao Kuwait. O pessimismo viria alguns anos depois. Depois das torturas da ocupação iraquiana e do exílio da classe dominante até então intocável.

12.3.11

the kwt diaries (8pm)

9.3.11

the kwt diaries (clusters)

São agora «famílias» o que outrora foram «tribos». O progresso que o petróleo impôs trouxe a procura vertiginosa do status quo da contemporaneidade ocidental. Em trinta anos, esta terra de primitivismo resistente tornou-se numa metrópole complexa e descaracterizada. Os eixos radiais que a fixam sobrepuseram-se à geografia e desenharam um território de enclaves rodeados por feixes de velocidade constante. Nómadas tornaram-se suburbanos, indivíduos periféricos, soltos e desenquadrados. Da mesma forma que os habitantes das cidades de lama e da proximidade cederam ao isolamento e protagonismo social. (Anoto a um canto: Enclaves como agrupamentos. / Agrupamentos como tribos).

Na travessia do país pelo deserto a paisagem denuncia a herança tribal original e a sua carga cultural intrínseca. Agrupamentos surgem na vastidão do horizonte anunciados pelas suas estruturas efémeras: micro-comunidades em tendas de lona; refúgios de fim-de-semana de inúmeras famílias para os meses de Inverno. A necessidade inconsciente do regresso ao nomadismo, o lado oculto de uma evolução económica e tecnológica ultra-sónica.

8.3.11

the kwt diaries (tuesday)

Vagueio por uma terra de dispersão. / Vagueio por uma terra de dispersão cuja identidade se define por um confronto mal calculado entre uma ostentação urgente de progresso e um não tão remoto legado tribal. Ao fundo desta terra de ninguém o «centro cosmopolita» não é o esperado começo mas revela-se o fim. O local onde tudo o que se conhecia acabou e ferozmente se reinventou numa cópia de outros. Adobe e taipa ao pó voltaram com a mesma rapidez com que o petróleo saiu do subsolo. A originalidade perdeu-se ao ritmo de esta progressão geométrica. A repetição e o sucedâneo formam uma nova autenticidade, de alguma forma já só sua e ela também imitada por outros no rescaldo dos seus próprios sucessos.

6.3.11

the kwt diaries (flatness)

Estou no ponto zero. No ponto central onde se cruzam dois planos perpendiculares infinitos. Um horizontal que se desenvolve radialmente perdendo volume até ao nivelamento total que é o deserto. E um outro, o vertical, sem espessura, hiperbólico, que será infinito até à vontade de Deus ou dos homens e da sua memória de Babel.

5.3.11

the kwt diaries (dawn)

O centro surge no horizonte nocturno como um cenário bidimensional e isolado, flutuante. Os edifícios das sedes financeiras e governamentais, a par das torres icónicas, disputam entre si a coroa de louros da contemporaneidade, assemelhando-se a colagens de formas improváveis num universo sem perspectiva ou profundidade. As variadas luzes que os enfeitam —marco da triunfante celebração nacional que passou— despoletam a alegoria do absurdo e da estranheza, enfatizando uma irrealidade infantil, como que sonhada e não possível, ingénua. A representação plana aproxima-se de nós e não nós dela, até ao ponto em que somos engolidos pelo seu aparente núcleo. Mas o espaço por si criado revela-se igualmente raso, abstracto, vazio. De gente, de vida e de motivo. Aqui, apenas os objectos inanimados parecem fazer sentido em relação uns aos outros; uns com os outros. Articulações estéreis e fabulosas. Depois sai-se como se entra, sem dar verdadeiramente conta disso.

the kwt diaries (friday)

Sobre «viajar» tanto se tem dito que tudo o que se acrescente agora soará sempre a chavão. Algo porém ficou esquecido e por fazer: viajar sem mencionar a viagem, como quem ama sem mencionar o amor —sobrando apenas o princípio, o fim, o fim do princípio e por último o princípio do fim.

2.3.11

heading to kuwait

É talvez a véspera da partida o denominador comum a todas as minhas viagens. Alinho em cima da cama meia dúzia de peças de roupa, os produtos de banho, calçado variado, o laptop. Depois o ritual do equipamento fotográfico: rolos 6x6, filme 4x5', backs e holders, disparadores, lupa de focagem, tripé, a Hasselblad, agora a field-camera de grande formato também, fotómetro. No final do alinhamento encaixo, primeiro mentalmente, cada grupo e subgrupo no tosco paralelepípedo que é a mala. Como um puzzle tridimensional. Ficam apenas de fora um par de livros de bolso, o passaporte e algum dinheiro.

A aventura, mais uma vez, começa.
Vou ter saudades tuas, sei-o e digo-te já de antemão.