27.2.09

Os pregões da modernidade, anunciando butano ao invés de peixe, acordam-me ao ecoar pelas ruas estreitas. Pelas nesgas da gelosia identifico os responsáveis, jovens indianos que percorrem os labirínticos quarteirões vendendo bilhas de gás. Gosto de manhãs e as daqui sobretudo pela sua luz, que em dias generosos como o de hoje atravessa o casco antiguo e se perde lentamente pelas promíscuas fachadas de pedra chegando ao chão em vítreos reflexos dourados. As vizinhas da frente ainda dormem, de persianas abertas que deixam entrever os seus corpos enrolados em lençóis claros. Ducho-me numa casa de banho com vista para um pátio interior carregado de varandas decoradas com roupa estendida, máquinas de lavar ferrugentas, cães de porcelana e gatos de carne e osso, bicicletas, velhas com toucas no cabelo e uma jovem escandinava que rega vasos de cannabis antes de ir trabalhar. O pão fresco vende-se na esquina do carrer Montcada. Pão de Pagés, o único que por aqui é verdadeiramente digno do nome de Corpo de Deus. Entre as apertadas ruas a caminho da padaria cruzo-me uma vez por outra com algum casal de turistas que se aventurou para cá do Museu Picasso, este território medieval e enigmático que alberga ainda os despojos da noite e dos vícios obscuros, nossos e de outros tempos, e de onde as putas africanas há poucas horas largaram o seu habitual turno de sedução.

26.2.09

dos livros

Há quase dois anos, antes de ir, deixei umas dezenas de livros na minha casa de Barcelona. Depois, do outro lado do Atlântico, acabei por deixar a casa também. Durante este tempo eles continuaram por cá, não tão longínquas terras catalãs, armazenados em caixotes de papelão povoando ligeiramente as minhas preocupações. Recupero-os agora e penso nas palavras que uma noite escutei: os livros que lemos em determinada altura são mais do que apenas livros, são igualmente diários — ou em última análise serão provocadores de registos mentais — de outras e muitas coisas que não vêm nas suas páginas. Penso nisso, este momento ao folheá-los. Registos de uma música específica que por aqueles dias se escutava on repeat, de uma característica luz que invadia a sala, de uma reacção alheia provocada por uma citação. Os livros, por dentro e por fora, são mesmo uma parte de nós.

24.2.09

'King and Queen', copyright Diane Arbus

Escusado será dizer que o mês de Fevereiro reúne os dois momentos mais burlescos do ano. O Carnaval, uma ode ao grotesco, e a noite de S. Valentim, ritual não menos carnavalesco. Por isso um bom momento, embora tal desculpa não fosse verdadeiramente necessária, para nos lembrarmos mais uma vez de Diane Arbus. Uma dessas poucas pessoas, como Pasolini por exemplo, que viu Fevereiro em todos os meses do ano.

20.2.09

el señor Monclús

Depois de quase dois anos, período durante o qual entreguei a complexidade do meu cabelo encaracolado à habilidade de uma matrona russa, cinquentona e bebedora de vodka nas horas de serviço na barber-shop da Metropolitan Ave, regressei hoje ao senhor Monclús, barbeiro no Barrio Gòtic e filósofo nas artes capilares e da psicologia feminina. A conversa, naturalmente muita como é apanágio da sua classe, versou sobre temas como a América, Obama, o penteado de Obama, Bush, o pentado de Bush e o porquê das traições de mulheres casadas com o melhor amigo dos maridos. Só depois, ao sair da barbearia e parar diante da vitrina da chapelaria do carrer d'Avinyó, estudei calmamente o meu reflexo e tentei perceber mais uma vez porque continuo a ir ao senhor Monclús. Pela conversa, parece-me; talvez apenas pela conversa, pois no que toca ao corte de cabelo é sempre e inevitavelmente para esquecer.

Enfim, como eu gostaria de ter o cabelo parecido ao do Dana Andrews. Seria tudo muito mais fácil.

18.2.09

milfs, those ladies we'll follow home

E facilmente me ocorrem outros casos parecidos: Vicky LaMotta, ex-mulher do Ragging Bull, Farrah Fawcett ou Nancy Sinatra. Todas com mais de cinquenta anos quando posaram nuas para a Playboy. Afinal, como alguém disse, os 50 são os novos 40. Um delico-doce efeito da hipermodernidade.

the beautiful persists



O tema (e a admiração) do (e pelo) amadurecimento feminino sempre foi uma constante neste blogue. Basta pensar na quantidade de vezes que o acrónimo milf ou o termo mulher madura encheram estas linhas — ou fotos, sem as referidas classificações, de ambas as coisas que por vezes são exactamente a mesma. Calculo que esta foto de Lauren Hutton tão-pouco necessite de qualquer tipo de legenda; excepto talvez para dizer que foi tirada no ano em que eu nasci, tendo ela trinta e quatro anos na altura e que vinte e sete mais tarde, aos seus sessenta e um, posou nua para a Big Magazine.

Debaixo do título Lauren Hutton: The Beautiful Persists.

17.2.09

the girls we followed home

Há um poema de Charles Bukowski que incide sobre as meninas que um dia acompanhámos a casa. Facilmente compreendemos que o poema tem uma pujança particular remetendo o sujeito, neste caso o poeta, e o objecto, no caso de Bukowski sempre as mulheres, para a idade maior, a velhice. Mesmo assim, numa observação mais ampla, não deixará de ser igualmente um reflexo pluri-geracional. Porque se aos setenta as meninas que um dia acompanhámos a casa são agora as senhoras de cabelos brancos e bengalas ou de pantufas em lares de dia, aos trinta elas são as mães atarefadas, as profissionais responsáveis, as carreiristas de sucesso, as aborrecidas mulheres fiéis. E embora aos trinta continuem a mergulhar nas ondas de espuma branca ou a encher os corpos de óleo bronzeador, há algo de jovial que se perdeu nelas, que se perdeu na exigência das suas obrigações sociais. Por isso, aos 30 ou aos 70, as meninas que um dia acompanhámos a casa estão sempre e naturalmente algo mais maduras do que aos 20 estiveram; mais pesadas, menos aventurosas, mais cansadas. Progressiva e inevitavelmente.

No fundo tudo isto poderá ser perfeitamente normal, o ritmo da vida, chamam-lhe alguns, mas a força intrínseca desta constatação dá-se pelo efeito reflectivo do fenómeno: também nós, neste caso o sujeito, estamos mais maduros, mais pesados, menos aventurosos, mais cansados do que um dia no passado estivemos. De uma forma igualmente progressiva e inevitável. O tal ritmo da vida, dizia eu, que um certo complexo de imaturidade tende a renegar e que me leva, precisamente, a um excerto de outro poema do velho gaiteiro do costume:

[...] the others had become sedate, / had become responsible / citizens with / children, jobs, mortgages, / life insurance and pet /dogs. [...]

16.2.09

o seu duplo perene

Stephane Audran

15.2.09

o que fica dos que se vão

Ficaram gravados os conselhos e as palavras de sapiência, que a idade e a longa vida lhe acumularam, e que em inúmeras vezes os transmitiu. Ficaram também as chamadas histórias de outros tempos, contadas ao género de parábolas, trazendo subtilmente muito mais do que aquilo que anunciavam; em tardes passadas à sombra de uma figueira nos agora longínquos e nostálgicos estios da infância. Mas mais do que isso ficou o paradigma de um carácter, no que a honestidade e justiça tocam. Ficou tudo isto, deixado por um amigo que se foi.

11.2.09

meo

O meu irmão mais novo enaltece as vantagens da televisão digital. Como caso prático mostrou-me um exemplo: estando fora às horas da emissão, deixou programada uma gravação. Agora, enquanto explica como tudo funciona, carrega no play e o programa começa. E eu, perante a gravação do 'Lingerie' do Fashion TV, concordo com ele. Ao ponto de também vir para aqui enaltecer as vantagens da televisão digital.

a midnight valium for a good night's sleep

Deviam ser por volta das cinco e meia da tarde quando passei por lá. Sendo Inverno, estava já escuro, mas a luz dos novos candeeiros era suficiente para iluminar o local. Cerca de sete anos passaram sem que eu cruzasse o dito sítio, fiz mentalmente as contas. Não por algum motivo em particular, apenas assim foi pois as geografias sentimentais e as urbanas andam interligadas, como as cartas de azar. Ao parar o meu carro no sinal encarnado, diante da passadeira, revi a história que um dia me contaste, passada talvez sete anos antes destes há sete anos atrás. Tu, ainda miúda, antes de mim e dos outros homens que estiveram antes de mim, de mochila às costas e com o ar inocente próprio das crianças que pensam já ser mulheres. A noite de Inverno, como esta, a chuva como a de ontem e uns candeeiros antigos e frouxos. Depois tu na passadeira, caída, desmaiada, o condutor que não te viu aos gritos a pedir ajuda, a poça de sangue, a perna dobrada numa posição impossível.

Revi tudo isto. Depois esforcei-me, mas o que eu não consegui rever foi o teu rosto.

10.2.09

dizia eu



"Por ser quem é", dizia eu.

6.2.09

sem título, um paradoxo



Por gostar desta foto de Rosalind Krauss ia escrever como título do post o habitual those ghostly traces, photographs. Mas por ser quem é Krauss, aqui retratada nos anos 1970, parece-me mais correcto transcrever uma frase sua do que a de Susan Sontag. Assume-se assim o compromisso: frase de Krauss para nova série. Para já fica como título o mui artístico e original sem título. Um paradoxo, como não poderia deixar de ser.

às vezes penso que gostava de ter o cabelo à Dana Andrews

De um certo ponto de vista 'O Presumível Inocente' (1990), de Alan Pakula, toca em alguns aspectos 'Laura' (1944), de Otto Preminger. Há no ar uma subliminar e peculiar devoção a uma morta, a um cadáver. No caso do primeiro justificada pela anterior história em comum, no segundo criada pela contemplação de uma única imagem e pelos testemunhos daqueles que perto dela viveram. Existe porém uma grande diferença: afinal Laura não estava morta, o que prova o excelso sexto sentido poirotiano da personagem de Dana Andrews, coisa que Sabich claramente não teve.

5.2.09

o presumível inocente

Em 'O Presumível Inocente' Barbara acusa Sabich, o marido (Harrison Ford), de ainda pensar na antiga amante. Sendo o tema em si recorrente entre (alguns) casais o comentário não seria de estranhar. Há no entanto um detalhe relevante: pela altura da conversa já ambos sabem que Carolyn, a amante, morreu na noite anterior vítima de um atroz crime. Esta particular situação vem ilustrar uma importante característica feminina. Mesmo mortas, física ou abstractamente, as exes serão sempre entre (alguns) casais uma sombra permanente. Estando o homem, quase sempre, no meio de tudo isto muito presumivelmente inocente.

4.2.09

o seu duplo perene

Lynda Carter

Lynda Carter, 'The Wonder Woman', a mulher maravilha.
Percebendo-se nesta foto muito bem porquê.
Algures nos anos 1970.

das lascas

No dicionário de Língua Portuguesa a palavra «lasca» tem diversos significados. Entre eles salientam-se os fragmentos de madeira ou metal ou estilhaço. Naturalmente que na gíria a palavra significa ainda mulher bonita, elegante e bem proporcionada. Há no entanto uma outra definição que me salta à vista: uma «lasca» pode igualmente ser uma espécie de jogo de azar. Esta definição existe utilizando a palavra como um substantivo feminino, mas a verdade é que não me lembro de tão licoroso sentido figurativo. Uma lasca é sempre uma espécie de jogo de azar.

2.2.09

ainda das tarefas de cicerone

Até me poderia parecer que a segunda semana foi igualmente rica e preenchida ao cumprir o meu papel de cicerone perante os amigos estrangeiros, mas a verdade é que do Porto a Coimbra, de Sintra a Sines não passei de um turista mais. O "ao menos falas o idioma" coube-me de parco consolo; mesmo sabendo que por exemplo no Porto não me entendiam lá muito bem.