31.12.09

dez anos de geografia sentimental

Robert Mitchum em 'Out of the Past', de Jacques Touneur

Jeff Markham: I sat there and drank bourbon, and I shut my eyes but I didn't think of a joint on 57th Street. I knew where I was and what I was doing. I just thought what a sucker I was.

dez anos de geografia nocturna

[...] the dancing girls are/ snoring, the mice are crawling/ in the paper cups, the donkey is/ pinned to the tail, the fable has/ crawled away to die, love is/ covered with dust,/ the temples/ are empty, the bird has flown/ the cage,/ the cage encloses a/ midget heart weeping, the dream/ has taken a dive and I sit/ looking at my hands, looking at/ my hands/ empty of the sound of the/ moment.

Excerto de 'Right Now', em 'Betting on the Muse', Harper Collins Publishers, pag 123.
De Charles Bukowski.

dez anos de geografia urbana

Restelo
Ajuda
El Born
Gràcia
Harlem
Upper West
East Village
Chinatown
Williamsburg
Avenida
Cu de Judas

blogosfericamente falando,

o ano foi marcado pelo fim do 'Estado Civil', com um derradeiro post no dia sete de Janeiro, e pelo aparecimento do 'Lei Seca' nove meses depois. Para bem dos nossos pecados, o responsável por ambas as situações foi o mesmo senhor. Ou seja, a Nós tirou mas a Nós voltou a dar, mostrando que a justiça divina que Santo Agostinho tanto apregoou se encontra de facto ao alcance dos homens. De resto, mantive-me muito fiel à minha blogosfera de sempre e de todos os dias, quase familiar, eu diria. Entretanto apareceram (e desapareceram) coisas interessantes, das quais uma ou outra ainda não actualizei na lista de links. Foi um ano de crise, diz-se. Talvez, mas não necessariamente na blogosfera.

29.12.09

think twice

Gertrud Fridh como 'Hedda Gabler', de Ibsen, por Bergman

modern drama

O norueguês Ibsen matou Hedda Gabler em 'Hedda Gabler'. A grega Anagnostaki simulou matar Kimon — mas não o fez — em 'A Cidade'. O norueguês Jon Fosse matou O Jovem em 'A Noite canta os seus Cantos'. Há aqui uma relação interessante entre suicídio, não-suicídio e geografia. Mas nada de novo, como sabemos. Nem mesmo no chamado Teatro Moderno e Contemporâneo.

a trilogia da cidade

A trilogia 'A Cidade' (1965), da autora grega Lula Anagnostaki (1940), coloca-nos num ambiente nebuloso de intenções e veracidade. Esta falta de nitidez provoca uma ruptura na mensagem — ou uma incomunicabilidade — entre as próprias personagens e igualmente para com o espectador/leitor. A verdade em cena é como um jogo do gato e do rato. Há insinuações e acusações, avanços e recuos, meios-ditos e não-ditos que espessam a inexpressiva ligne de vérité a um campo dúbio e pantanoso. Encontramos resquícios de outros. 'A Parada', terceira parte da trilogia, leva-nos remotamente ao 'Silencio' (1963) de Bergman. A reclusão de dois jovens irmãos (neste caso um de cada sexo) perante uma acção externa desconhecida do espectador que vai evoluindo de maneira hedionda e grotesca, passando-se assim de um espaço pequeno e exíguo — um quarto com uma única janela — para um lugar de memória histórica e colectiva. Em todas as partes da trilogia esta memória — a Ocupação Nazi — é constante e vincada.

Encontram-se ainda outras referências no teatro de Anagnostaki. O crítico britânico Howard Loxton menciona a de Pinter pelo sentido de ameaça e a relação disfuncional das suas personagens. Anagnostaki não me parece tão subtil como Pinter — ou a sua ameaça não é tão subtil como a de Pinter — pois há nitidamente uma concretização. A fleuma emocional grega tão-pouco se aproxima da britânica e da sua contenção característica. Anagnostakis é mais temperamental, menos pausada e elíptica; mais realista. O seu universo é igualmente um espaço contido mas o que interessa vai para além dele. E não apenas metaforicamente, como a Memória em Pinter. A cidade está para lá das quatro paredes e as personagens apresentam-na entre verdades e mentiras. Como, aliás, apresentam tudo o resto.

to lara

Jivago foi um homem tão universal que até fez jus ao conhecido dito popular: os homens gostam das boazonas, mas no fim casam com as boazinhas.

26.12.09

do espírito da quadra



Mesmo tendo sido educado na religião católica —que por tradição familiar e aulas de catequese (uff) me levou até à Comunhão Solene— nunca fui verdadeiramente crente do Acto e do Mito. O meu entendimento da matéria tem-se desenvolvido com os anos e poderá classificar-se como um evolutivo agnosticismo cínico. Acreditar superficialmente que o homem um dia terá a capacidade (embora no fundo pense o oposto) de resolver mistérios divinos que conscientemente acho que não existem, (não obstante sentimentalmente prefira estar enganado). É desta forma que olho para o 'Dr. Jivago' de Pasternak. Há algo de messiânico nele, coisa que com alguma força de vontade também conseguimos encontrar no burro 'Balthazar' de Bresson. Lutou contra as misérias e as dores dos outros com altruísmo e enfrentou o pior da natureza humana —aquilo que só a guerra provoca— com coragem. A fome despoletou a Revolução e esta o saque e a pilhagem. Por sua vez, tudo junto provocou o êxodo do nosso bom doutor e poeta. Mostrou-se sempre sensível e terno, para com os seus e perante os demais. A sua mensagem não é declaradamente pela Palavra, como num profeta bíblico para uma audiência atenta, nem mesmo pela Poesia para uma legião de seguidores. É antes pelo exemplo de estoicismo. Não sei, (nem me interessa), se Pasternak (nascido judeu) foi um fervoroso crente em qualquer religião. Acreditou, isso sim, nos homens. Tanto nas suas virtudes como nas suas desgraças. Jivago aparece remotamente à minha imagem subconsciente como o seu Cristo. Talvez por isto, o épico de David Lean (après Pasternak) é dos melhores filmes para o aborrecido espírito de compaixão da quadra. Pelo menos para alguém como eu.

24.12.09

culpado antes de réu

Pelo tom, parece que de repente deixara de ser ele e passara a ser apenas um alvo de escarniozinho simplório e de mesquinhez; um estorvo, até. As qualidades tornaram-se inexistentes e invisíveis para a defesa e os defeitos elevados ao expoente máximo para o ataque. As fraquezas foram expostas como carne humana atirada às feras. Depois, nesse circo romano, o povo gritou por mais. Inviolável fora da arena, acusou com base no desconhecimento, na prevaricação e no lugar-comum de noveleta barroca. Anónimos que acabaram verdugos e que surpreenderam pela precipitação e leviandade das suas sentenças; linha após linha, frase após frase, conclusão após conclusão. Disparates sem causa mas com efeito, deixando assim tudo terminado no cadafalso. Não pela corda mas pelo veneno.

17.12.09

um abalo para dois continentes



Um grande sismo é muito comparável a uma grande paixão: algo rápido, intenso, vibrante que geralmente deixa estragos e dá muito que falar e quem não o sentiu, lamenta-se.

16.12.09

um modelo para dois continentes

Por onde foi, o reencontro com tão particular imagética não poderia ser mais improvável. Exactamente a mesma que fotografei meses como sendo única — e que em parte o é — e cuja identidade reside nos pequenos ícones da banalidade. São assim muitos subúrbios norte-americanos: vulgares, patrióticos e consumistas; desiludidos. Podemos dizer que a construção de esta paisagem específica nasceu por lá — America, I mean — e o que encontramos hoje são derivados seus. Não me refiro à paisagem catalogada por Venturi e Ruscha, povoada de mimetismos, nem tão-pouco à de Sternfeld ou de Ormerod, que acaba em muitos pontos por ser a mesma de Cheever e Yates. Refiro-me a uma outra, mais periférica, suja, industrial, dolorosa, derrotada e remotamente festiva: a de Carver e de Graham. Não poderia ser mais improvável, dizia eu, porque bastou-me afastar-me um pouco para encontrá-la. A identidade global actual está naquele que é o espaço intersticial comum a todas as civilizações contemporâneas: a cintura urbana. Nem cidade, nem campo; nem carne, nem peixe. Agora, de máquina na mão, vou novamente ao seu encontro. Como se não existissem 5.400 km de distância entre uma coisa e outra. Entre um original e um sucedâneo.

according to mr. yates

Voltando a Yates, por uma outra razão, comprovo que a solidão em 'Eleven Kinds of Loneliness' nunca é francamente declarada. É, no entanto, dada de bandeja para quem queira ler nas entrelinhas. Na sua maioria, Yates foge aos estereótipos das figuras frágeis, desprotegidas e sós. Procura não cair no lugar-comum de associar a solidão ao abandono, à incapacidade ou ao isolamento. Ao contrário, coloca na sua definição personagens que pertençam a uma estrutura de relações sociais e com responsabilidades e interacções perante terceiros. Sabe que a solidão não se manifesta em seres solitários. Estes tendencialmente já o são por natureza; como se sê-lo fosse uma condição, ao passo que a solidão seria uma condicionante. O solitário afasta-se, renega e a solidão pode por sua vez ser precisamente o resultado de um afastamento e renegação mas por outras partes da equação, ou seja, os outros. Yates compreendeu que ser solitário não é «estar só» e quem não está só pode «sofrer de solidão». E convém ainda acrescentar que, segundo ele, há onze tipos de ela.

14.12.09

a sudden gust of wind



Jeff Wall, 'A Sudden Gust of Wind' (After Hokusai), 1993.

Apropriada, de alguma forma, para esta manhã de Inverno. Não pela repentina rajada de vento em si, pois como nos explica Michael Rush no seu 'New Media in Art' ela é fabricada digitalmente e todo o mise-en-scène é provocado, mas sim pela potencialidade da (acção na) imagem como referente do Acaso; ou — que me perdoe Camus — de Deus. Depois, a sua identidade invernosa, fria e cinzenta poderá ser uma alusão ao Purgatório, um local de castigo temporal que no fundo não é bom nem mau, e a improbabilidade de se cruzarem quatro transeuntes tão díspares num caminho rural e periférico poderá ser igualmente uma metáfora para a universalidade transversal da condição humana. Todos debaixo dos desígnios divinos. Talvez por isso ela seja, de alguma forma, apropriada para esta manhã de Inverno.

11.12.09

the sun's burial

'The Sun's Burial', de Nagisa Oshima

A morbidez do título desta longa de Oshima aparece como uma metáfora à queda do Japão formalista e imperial. Uma nova nação emergia dos fragmentos de uma derrota pesada e humilhante, tornando-se mais permeável à influência ocidental e a novos paradigmas. Rebeldes sem causa surgiram (também) nas grandes metrópoles nipónicas entre bandidos de bairro e capangas de meia-tigela. O enterro do Sol é por isso muito mais do que uma analogia social. O Império do Sol Nascente afunda-se, é certo, mas o caos de referências provoca igualmente uma lenta agonia em vidas indefinidas de arrasto colectivo. Nelas, a luz desvanece, antevendo um período de escuridão emocional. A morte do sol provoca tudo isso, não obstante há sempre uma voz insurrecta. Mesmo que esta não saiba ao certo porquê.

1.12.09

quatre jours à Paris

Paris é como um certo tipo de mulheres. Muito bela mas igualmente muito antipática. Por isso Paris, tal como um certo tipo de mulheres, não serve para muito mais do que para um one-night-stand. Ou quatro, quanto muito.

à la rue de faubourg du temple

Ao passar do outro lado da rua fria e molhada já se via o ambiente festivo no interior. Figuras estranhas movimentavam-se animadamente por trás da fachada de vidro escuro. A música, inesperadamente familiar, foi o apelo. Portuguesa, popular, jocosa e ordinária. Uma matrona de cabelo pintado de louro dançava sozinha, uns pares habitavam as cadeiras dispostas em fila ao longo do estreito bar. 'Du Centre', indicava o nome na porta quando entrei. Ocupei uma mesa ao canto e pedi um pernod.

Se era um bar de emigrantes portugueses, perguntei à senhora do balcão. Não, portugueses ali havia apenas um. E gritou pelo seu nome. José levantou-se e veio ao nosso encontro, apresentando-se. Respondi ao cumprimento e iniciámos uma breve conversa de circunstância até sermos interrompidos pela sua companheira de serão. Queria dançar, explicou-me. E ele fez-lhe a vontade. De volta à mesa, fiquei a observar aqueles dois. Ele, com fatiota de Domingo ruçada e amarrotada, andava na casa dos cinquenta. Era grisalho e não teria muito mais de 1,60m. Pouco depois soube que ela, embora dançasse como uma minhota, era afinal marroquina e que a justificação para os óculos escuros que trazia devia-se ao facto de não ter um olho. Eram ambos muitos magros, dois seres escanzelados que se mexiam com a desinibição que só o álcool ou a decadência proporcionam. Ninguém parecia reparar em ninguém, nem mesmo na matrona loura que ainda se abanava solitariamente com os olhos fechados; em transe, quase. Na mesa em frente à minha, uma asiática de maquilhagem carregada trocava carícias com um homem alguns anos mais novo.

Passaram outras músicas, acabou-se o pernod e foi então que o português voltou para retomar a conversa. Ainda ofegante, falou sobre a marroquina e contou que vive há mais de trinta anos em Paris. Excepto por dez, um retiro espiritual, palavras suas, em que esteve preso. Culpado ou inocente, perguntei. Culpado, respondeu com um sorriso malicioso. Esfaqueara o amante da mulher. Então «inocente», corrigi eu. Riu-se e voltou à vida dele. Deixei-lhes paga uma rodada no balcão e saí. De novo na rua e na chuva, veio-me à ideia um velho ditado popular: homem pequenino, velhaco ou dançarino. José, pelos vistos, era os dois.