30.1.09

'claws of paradise', C. Bukowski

[...] there is nothing to do / but drink / play the horse / bet on the poem
as the young girls become women / and the machineguns / point toward me / crouched / behind walls thinner / than eyelids.
there's no defense / except all the errors / made.
meanwhile / I take showers / answer the phone / boil eggs [...]

sweet sixteen e a cultura popular

Receber amigos estrangeiros e fazer de seu cicerone é a melhor forma de redescobrir certas características de uma cidade e da sua cultura, sobretudo para quem tem estado os últimos anos fora. Nesta redescoberta compreendem-se da mesma forma as recentes mutações. Assim, se há coisas que permanecem iguais, como por exemplo o fado gingão ou o cacilheiro para Porto Brandão, outras mudaram consideravelmente. A noite, em primeiro; as pessoas que estão na noite, em segundo; e nós próprios à noite, em terceiro.

23.1.09

telespetadores



David Cronenberg antecipando em 'Videodrome' (1983) uma pavorosa especificidade do nosso recente Acordo Ortográfico. Telespetador, s.m., aquele que vê televisão e aquele que igualmente a espeta.

ainda sobre mencken

Às páginas tantas, na 85 para ser exacto, Mencken aponta no seu característico tom satírico uma terceira razão para não abandonar os Estados Unidos, não obstante, e nas suas palavras, os incitamentos lascivos de muitos expatriados para a eles se juntar. Refere assim a ideia de um país-espectáculo cativante pela oferta de um entretenimento peculiar e inigualável (pensava ele): peixeirada entre demagogos, elaboradas tramóias pelos ases da trafulhice e caça aberta às bruxas e aos hereges.

Mas agora pergunto-me: e se Mencken, popularmente conhecido como o Sábio de Baltimore, preferiu não sair da América por saber que tal como ele tinha elevados preconceitos culturais em relação à grande maioria dos seus conterrâneos, ao ir para a Europa não iriam da mesma forma os europeus exercer esse sentimento de superioridade perante ele, um «americano»? É bem provável, pois preconceitos há em todo o lado e assim sendo, mesmo nos anos '20, já era sempre melhor ser sábio em casa própria do que burro em terra alheia. Ou então esta conclusão é apenas um reflexo do Mencken que há em mim a falar.

22.1.09

mr. mencken



Parece assim uma especiezinha de Schopenhauer tardio à la américaine.
Ou seja, um mau-feitio que não lembra nem ao diabo.

on being an american

O norte-americano Henry Louis Mencken, em 'On Being an American' (da série 'Prejudices'), num culto cínico e provocador de elitismo cultural afirma no início do segundo capítulo em jeito de resumo —embora não se devam menosprezar para o tema os dois seguintes— que "Os Estados Unidos são essencialmente uma comunidade de gente de terceira categoria; esta é uma distinção fácil de fazer devido ao baixíssimo nível de cultura, de informação, de gosto, de capacidade critica e de competência."

Dando o tom, continua depois num registo semelhante no qual todos os elementos da sociedade —de colonos a pioneiros, de canalizadores a intelectuais, de políticos a jornalistas— são alvo da sua prolixa verborreia acusatória. Mencken mostrava assim, no ido ano de 1922, algo sintomático da «sua» mas também da «nossa» actualidade: being an american —e o que quer que isso signifique— pode igualmente ser being an anti-american.

21.1.09

dos eternos românticos

Sempre fizera leituras erradas dos homens. Julgava-os francos quando não o eram; maltratava-os desconfiada e com um feroz instinto de auto-preservação quando eles não o mereciam. Um dia conheceu Alain, um playboy de renome daquela praia francesa. Tinha charme, comentara mais tarde a uma amiga, e era um connoisseur; da vida e das mulheres. Ela sabia, ou assim se convenceu, de que ele não serviria para muito mais do que para uma aventura, divertir-se por uns breves tempos e posteriormente cada um seguiria o seu caminho. Disse-o a Alain, que bateu com a porta no minuto seguinte. O que demonstrou que afinal era um homem sério, nem que fosse apenas como ideal.

19.1.09

da delico-doce madeira de acácia e seus acabamentos

Ignorando as condições atmosféricas, passadas, presentes e futuras, concluo finalmente a montagem de uma mesa em madeira de acácia para o terraço. Devido à obrigatória protecção para as mui variadas amplitudes térmicas, da chuva de Inverno ao sol de Verão, a madeira vem revestida com um líquido de origem resinosa que tresanda a merda. No catálogo, a mesa aparece classificada como um produto exclusivo para o exterior. E eu, perante isto, não poderia estar mais de acordo.

16.1.09

jayne, a man's field

Jayne Mansfield

very fast, very past

'Uma imagem vale mil palavras'.
Não me ocorre outro ditado popular igualmente tão hipermoderno.

nyc 10989, magnum photos

Folheio com calma o livro, 'New Yorkers as seen by Magnum Photographers', que tinha há algum tempo na lista de espera das leituras em atraso. Seguindo o conceito de Barthes, o meu punctum dá-se ao chegar à pagina oitenta e tal; mesmo depois de atravessar séries de imagens que remontam à minha memória quotidiana da cidade que nunca dorme; por Alex Webb no Financial District, onde trabalhei, à cena de estalada entre dois homens na linha L, a mesma que usei diariamente a caminho de casa em Williamsburg, por Elliott Erwitt. Olhei a fotografia surpreso, desconhecia-a. É uma imagem simples, despretensiosa, urbana e tranquila. Tem por título 'a newly arrived immigrant eats noodles on a fire escape'. Ela é isso, de facto, mas é para mim muito mais do que isso.

**

Podemos dividir o campo visual em dois planos distintos. À esquerda revela-se uma rua movimentada, numa cota inferior, e o facto de ter mais trânsito em direcção a sul demonstra que a hora do dia será talvez pouco depois das cinco da tarde, altura em que o fluxo para Brooklyn —a Manhattan Bridge está a um quarteirão— começa a aumentar. Não há sol nem sombras. As fachadas, de cinco a seis pisos, estão decoradas com reclamos de ourivesarias e de diamantes. No plano direito da fotografia está um homem asiático sentado num degrau de umas escadas de incêndio, no patamar exterior do terceiro para o quarto andar. Está apenas de cuecas e chinelos, de pernas cruzadas. Com a mão esquerda segura uma taça da qual sorve distraidamente, com a direita os chopsticks e parece ignorar o fotógrafo à sua frente, demonstrando uma certa intimidade.

**

É esta a pensão, a minha lodge de Chinatown. Aquela em que por aqueles dias (no final da primeira estadia) chamei neste blogue de Os dias do China Hotel e na qual fiquei por mais de um mês, alternando períodos de seis, sete noites num cubículo do quarto andar com outras passadas noutros sítios. Foi aqui que estive mais só do que nunca e do que em qualquer outro lugar. E foi também aqui que de alguma forma me reequilibrei, recompus e preparei o regresso à normalidade, com apenas a companhia de cigarros american blend como conselheiros nocturnos. Exactamente nas escadas-de-incêndio desta foto, onde se vê um emigrante recém-chegado a comer uma sopa de massa chinesa no ano de 1998, uma década antes de mim. Não há engano possível.

15.1.09

não te preocupes sophia,

Sophia Loren espreita o decotezorro de Jayne Mansfield; foto de Joe Shere

que olharíamos todos.

bone lonely, obra ao negro

'Bone Lonely', um conjunto de 32 (ou 33?) fotografias a preto e branco —pequenas, sujas, escuras e cheias de grão— de Paulo Nozolino, dá o título à exposição. Nestas imagens dispersas, espacial e cronologicamente, o autor agrupa elementos essenciais e característicos da sua visão particularmente enegrecida e pessimista do mundo. Nozolino (1955, Lisboa) percorre o lado obscuro das cidades e da sociedade, registando texturas, sombras humanas, rostos anónimos, vazios urbanos, despojos domésticos.

Encarna o papel do observador invisível, ele próprio uma terceira sombra, que capta a memória e os momentos daquilo e daqueles que nada de sedutor exercem no imaginário global das chamadas sociedades desenvolvidas e assépticas. Nozolino denuncia uma podridão latente e escondida, sendo a «escondida» por vezes visível e ignorada, e reforça assim a solidão de um mundo marginal —físico e abstracto. Mas não é o acto de denúncia o veículo condutor do seu trabalho; este é apenas uma consequência da sua auto-exorcização enquanto homem, da sua procura pela Beleza & Horror entre a decadência e a banalidade.

Acoplada a Nozolino está a aura do fotografo incondicional, do caminhante errático para o qual a «viagem» é a indissociável parte do processo. E uma vez mais, como ele próprio comenta, é no vazio de quartos de hotel que revisita os seus medos e erros. Talvez por tudo isto o que vemos em Paulo Nozolino é também um bone lonely, um esqueleto solitário.

13.1.09

nobody in my books drinks cognac
because I can’t spell the word




Ou o porquê de todos beberem whisky duplo com gelo.

o espectro de Lipovetsky

'Bone Lonely' é mais um trabalho de dissidência em relação à hipocrisia global que tenta vender a imagem da felicidade às pessoas. Sinto-me só, sinto-me desiludido, mas por outro lado há uma espécie de serenidade interior por ter chegado a estas conclusões.

Paulo Nozolino, no Ípsilon, sobre o seu mais recente trabalho.

12.1.09

o espectro de Hammershøi

'Intimacy', copyright de Rita Magalhães

Primeiro em Carl Th. Dreyer, agora em 'Intimacy';
um belo e melancólico trabalho de Rita Magalhães.

a colecção BESarte, educação pública como um segundo acto de mecenato

A colecção BESarte Foto, iniciada em 2004 e agora parcialmente exposta no CCB (imperdível e com entrada gratuita), é a chamada colecção by the book. Através do seu objecto central, a fotografia (e dentro da fotografia essencialmente a fine-art photography), reunem-se alguns nomes-chave da história do meio a partir dos anos 1960/70 do século XX e muitos novos autores do século XXI. A opção por artistas de referência (nacionais e internacionais) serve de suporte à colecção; uma escolha de obras emblemáticas e singulares em detrimento de séries de um mesmo autor permite uma maior variedade de estilos e abordagens; e a aposta paralela em gerações mais novas e em ascensão traz a contemporaneidade e vanguarda. Estes elementos, ou as bases que estruturam a selecção de obras, são explicados na introdução do livro/catálogo por Alexandra Fonseca Pinho, a curadora da colecção (e não da exposição).

No acervo de mais de quatrocentas e cinquenta obras, impressionantemente reunidas em apenas quatro anos, há uma segurança na escolha de fotógrafos consolidados mundialmente que garante o investimento (pois uma colecção privada é também e sempre um investimento) e existe igualmente um interesse em nomes novos e com potencial internacional, um acto de mecenato. Ainda de salientar que esta aposta cultural do BES, claramente um paradigma, vem ao mesmo tempo abrir portas ao meio (to the medium) num acto de educação pública —ou um segundo acto de mecenato— para um país no qual a fotografia (e sobretudo a fine-art photography) não tem (ou pouca tem) qualquer expressão comercial.

mesmo a calhar

Agustina Bessa-Luís na revista LER deste mês. Vem mesmo a calhar.

10.1.09

A Sibila

Bastou-me chegar ao final do Capítulo I para perceber que não vale a pena continuar a dobrar os cantos às páginas, um velho vício do qual sofro para marcar algo relevante na leitura. A escrita de Agustina Bessa-Luís é singularmente poderosa, sendo por conseguinte difícil escolher algumas passagens em detrimento de outras. Passando a hipérbole, todas as linhas são notavelmente pungentes na dissecação e na análise da condição humana e dos mecanismos da mente e espírito, suportadas por uma astuta capacidade de distanciamento e observação; mesmo que —como é o caso de 'A Sibila' desenrolada maioritariamente num ambiente rural— remetidas para um espaço físico e temporal tão distante da hipermodernidade que geralmente me assombra.

a ligação por prevenção, ou o «estilo hamletiano»

[...] e o facto de se ligar irremediavelmente a Maria representava um golpe de defesa que corrigiria muitos desvarios a que se sabia sujeito. Este traço do seu carácter transmitiu-o depois a quase todos os filhos, e podia definir-se pelo «estilo hamletiano», [...].

Em 'A Sibila' (1954), de Agustina Bessa-Luís, naquilo que me parece ser a primeira de múltiplas transcrições.

9.1.09

Hélas



Tanta merda e afinal aos seus olhos não foi mais que Pétain.
Um dia um magno herói, outro um comodista traidor.

Hélas.

o ponto de equilíbrio

Se há coisa que não muda são pessoas, como se tem eternamente dito, mas tal como as pessoas tão-pouco mudam as relações entre as pessoas. Ambas podem evoluir, separadamente ou em conjunto, mas a essência de cada uma é imutável. O que geralmente acontece é que nessa evolução se tenta encontrar um «ponto de equilíbrio» que posteriormente deverá ser mantido através de um certo e particular esforço, inconsciente ou não, no qual todas as partes se digladiam mais ou menos secretamente. Estas ditas partes serão, por exemplo numa pessoa, as deficiências de espírito e fragilidades de carácter, defeitos reconhecíveis, e a tentativa em combater, camuflar e renunciar a sua totalidade face aos padrões que aspira; humanos, morais, sociais, relacionais. Numa relação, cada parte é naturalmente uma das pessoas que procura seguir um fio condutor, balizado pelo «ponto de equilíbrio» dela própria, que sabe não poder ultrapassar em favor de uma esperada harmonia.

É este esforço, tido nestes parâmetros como uma evolução pessoal, que caracteriza a posterior evolução relacional e faz com que esta última pareça forte, próspera e consistente. Mas se há coisa que não muda são as pessoas, como se tem eternamente dito, e por isso, na sua génese, tão-pouco mudam as relações entre as pessoas. O «ponto de equilíbrio», ou a sua infinita constância, é assim uma coisa muito utópica, como uma espécie de torrezinha de Babel de nós próprios.

6.1.09

o seu duplo perene

Monica Vitti

A Sara escolheu 10. Eu, pelo que sempre li da Sara, escolho ainda uma décima primeira.
A Vitti, para a Sara, pois mais uma vez bate tudo certo.

uma nova contagem

Visitei-o três vezes em diferentes alturas do ano. Movimentava-se lentamente na sua sala ampla de um apartamento no final do Upper West Side com vista para o Riverside Park. As paredes forradas a tecido e a elegância do mobiliário soavam aos códigos decorativos dos anos 1960, denunciando nos dias de hoje nada mais do que um toque feminino que há muito desaparecera. Guardava as fotos amarelecidas e gastas numa cómoda igualmente velha e nunca se cansava em mostrá-las em cada uma das minhas visitas. Eu não era eu, era unicamente uma sombra concordante e interessada para a qual ele explanava as antigas memórias.

Veio para Nova Iorque há cerca de sessenta anos, revelou-me uma vez, e embora esse período da sua vida não faça parte do rol de histórias interminável, sei de outra fonte que nasceu na Martinica Francesa e lá passou a sua infância. Foi toda a vida contabilista, com escritório próprio, de pessoas de relevo na sociedade nova-iorquina. Percorrendo os seus álbuns fotográficos percebe-se o seu mundo: as viagens para locais exóticos e idílicos, as festas luxuosas e as mulheres atraentes. Mas o que conta na sua vida só é válido a partir do momento, nos finais da década de 1960, em que conheceu aquela que viria a ser a sua futura mulher. Agora, com oitenta anos, sem filhos e viúvo há quinze, explica-me que inconscientemente despreza e esquece tudo aquilo que vem «antes» ou «depois» de ela. Eu vi as fotos e compreendo-o. Uma mulher assim pode fazer um homem pôr tudo num novo princípio, numa nova ordem, numa nova contagem. Acabou por dizer-me que era uma num milhão. Eu sei o que é isso, respondi-lhe, embora ele não tenha acreditado.

5.1.09

o lugar vazio

Em Lisboa, agora um interlúdio de outras cidades noutros países, volto a encontrar o meu velho lugar de pedra no sétimo degrau de umas escadas de mármore de uma igreja da Rua Garrett. Bom para ver quem passa, ainda que não passando alguém, é como se não passasse ninguém.

a metáfora



Ou o meu outro lugar.

a midnight valium for a good night's sleep

A janela aberta. Cigarros atrás de cigarros fumados a meias com o vento que entra no carro. Ouve-se apenas o monótono barulho do motor e a lenga-lenga dos pneus a massacrar o asfalto — hipnótica, de certa forma, tal como a perspectiva da estrada escura que teima em não levar-me a lado nenhum quilometro após quilometro, cigarro após cigarro. Assim são as noites na ressaca de ti, pelas estradas desertas do Alentejo.

2.1.09

dos pontos fracos

Relações de ouro com pés-de-barro desmoronam-se sempre em noites de chuva forte.

os 400 metros

Percorri de novo aqueles quatrocentos metros. Os mesmos quatrocentos metros que calcorreámos na primeira madrugada do ano entre chuva e nevoeiro, entre gritos e insultos. Os quatrocentos metros do teu histerismo e do meu desespero; da tua fúria e da minha incapacidade; da tua fuga desmedida e do meu medo ao imaginar-te sozinha na noite deserta e perigosa de uma cidade estranha e distante. Revi mentalmente, passo a passo, cada expressão e cada frase, cada loucura e cada falta de tacto. De hoje em diante, nestes quatrocentos metros e na minha memória, ficarão para sempre as inesperadas e improváveis imagens sombrias que se sobrepõem agora a quaisquer outras que vivemos — como um trauma, como aquelas pessoas que um dia encontram um cadáver de alguém de quem gostam pendurado na sua sala de estar.

1.1.09

lacrimae rerum

Estado Civil (2006-2008)

**

The barns are stormed
The windows kept
& only one of all the rest
To dance & save us
W/the divine mockery
of words

in 'American Prayer'
1978, Jim Morrison