30.6.08

o meu tributo

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a Raymond Carver.
(díptico, Suburbia, Junho 2008)

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os despojos sentimentais

Os 'despojos domésticos', a par de outros dois itens, fazem parte do meu interesse fotográfico na 'paisagem urbana'. Numa sociedade hiper-consumista os objectos adquirem rapidamente um valor efémero; tudo é infinitamente substituível. Estes conjuntos de objectos abandonados, que inicialmente revelam a tendência de uma educação geracional e mesmo de uma consciência moral, acabam na realidade por ser uma metáfora de outros círculos. A metodologia das relações humanas — social e emocional — não é diferente da metodologia do consumidor/objecto de consumo. Assim, os despojos domésticos não são mais do que um reflexo dos próprios despojos sentimentais. Tudo é efémero e infinitamente substituível. Seja cartão, plástico ou carne-e-osso.

o lugar do morto

Detrás da sua linha de segurança, apanágio de jovens eunucos e velhas prudentes, observava o desenrolar das vidas dos outros com arrogância. Não ser exposta aos mesmos problemas e não estar presente nos mesmos cenários de conflito emocional proporcionava a devida distância para uma avaliação lógica e depurada — por vezes sarcástica e irónica — das fraquezas alheias. A vida na redoma de vidro riscado, já algo baço, que ninguém se interessava em cuidar protegia-a dos ataques de terrorismo emocional, esses actos de cobardia sem aviso prévio. O orgulho de não ser vítima de tais circunstâncias, como tantos outros o eram, provocava uma altivez no ego solitário. Não sofrer, e por conseguinte também não fazer sofrer — é certo e valhe-se o altruísmo — tornou-se com os anos na sua maior preocupação. Estava viva, dizia-me. Mas era mentira. Sempre a vi no lugar do morto.

29.6.08

anatomia de uma cidade



Midtown, East Side, Manhattan, NYC.
Junho 2008.

28.6.08

das biografias

Conheci Burton mais tarde, já fora do período da adolescência, e talvez por isso ele não tenha tido o peso de uma referência directa —no que toca aos exemplos de aventureiros reais— que tiveram outros que conheci antes dele nesses breves anos da Segunda Educação Sentimental.

Henry de Monfried, ao contrário de Burton e ao lado de Robert Capa e Hemingway, povoou o meu imaginário de adolescente. As aventuras do francês pelo Mar Vermelho, a bordo (se bem me lembro) de uma chalupa de setenta pés, combinavam todo o exotismo do chamado 'Apelo do Oriente' com a adrenalina das melhores histórias de corsários de Robert Louis Stevenson. Na altura em que o mundo dançava ao som do fox-trot, Monfried percorria a costa do Egipto até à ponta do Corno de África contrabandeando pérolas, haxixe e por vezes armas para os rebeldes do Iémen. À semelhança de Burton e de qualquer outro aventureiro que se preze, Monfried também dominava os dialectos & costumes locais.


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Por tudo isto, quando aos quinze anos fui jogar râguebi a Lyon, aproveitei uma tarde livre para procurar o gabinete de recrutamento da Légion Étrangère na gare da cidade. A Legião Estrangeira, em parte pelos relatos de Lartigue, ocupava de igual modo o meu imaginário dessa parte do Mundo — não em mar, como Monfried, mas por terra — o deserto. Encontrei a placa na parede e dois homens esperavam alinhados ao lado da porta. Não entrei. Anos mais tarde dei por mim nas classes de árabe da mesquita de Lisboa, arrastando as últimas migalhas de um sonho de adolescente.

Nunca, por minha culpa, isto me serviu de muito. Agora, como o Lord Jim do Conrad, procuro inevitavelmente a redenção ao meu acto de cobardia. Embora, por minha culpa também, tal já não sirva de nada.

26.6.08

nomadismos (2)

Sir Richard Francis Burton

Nunca aprofundei detalhes da sua biografia —embora o livro esteja ali há meses a ganhar pó— e talvez não venha a fazê-lo por duas razões: admirar o percurso de um homem não significa necessariamente admirar esse homem enquanto Homem; e segundo) os aborrecidos detalhes biográficos de génese genealógica compõem sempre grossa-parte destas publicações. No fundo, o que me interessa em Richard Burton (1821 – 1890) não é a sua vida, mas sim a ideia da sua vida.

Aventureiro, explorador, orientalista, etnólogo, militar, autor, tradutor, diplomata e ainda hipnotizador, detalhe que desconhecia mas que a Wikipédia fez o favor de acrescentar. Dominava mais de vinte idiomas e percorreu durante anos África e a Ásia. De entre os seus inúmeros feitos a todos os níveis —viagens, explorações e publicações— deparei-me com Burton através da sua tradução homérica das 'Mil e Uma Noites, os Contos de Sherazade' (que agora retomo na versão inglesa) pois incluía na contra-capa um epítomezito das suas aventuras.

Ele sim, foi um nómada.
Eu não passo de um subproduto da chamada 'Globalização'.

nomadismos globalização

Nos últimos anos mudei três vezes de país, três vezes de cidade e dentro das cidades várias vezes de vizinhança. Em Barcelona vivi no Born e depois na Gràcia, bairro do qual não saía por semanas a fio; por aqui já estive pelo Harlem, que valia pela espelunca de jazz à noite e pelo frango frito da 125th Street ao Domingo depois da missa; pelo Upper West, onde a ligação espontânea ao Central Park e ao Lincoln Center me distraíam pelo Inverno; pelo Lower East e pela East Village, de longe as minhas áreas favoritas desta cidade — carregadas de happening, cosmopolitismo e ecletismo, possuem também a calma das noites europeias de Verão.

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Por isso, agora que passou um ano, é curioso constatar que o que mais me agrada em NY é exactamente aquilo que possui características semelhantes ao meu próprio background enquanto europeu. Não suporto Times Square —coisa abjecta que Baudrillard poderia classificar como hiper-realidade— tal como não suporto o Financial District, o melhor exemplo de selva urbana do Mundo. Mas toda a Village (East-West) me encanta nesta altura do ano. Tem um charme muito próprio; em parte devido à sua reconhecida fama avant-garde (para turista ver), mas a verdade é que se encontram por lá momentos de hedonismo que relembram por exemplo alguns quartiers de Paris. Depois também há Williamsburg, em Brooklyn, mas isso já é outra história.

24.6.08

tatsuya nakadai

'Samurai Rebellion', de Masaki Kobayashi

Os samurais andam pelo Film Forum. Ou mais precisamente, Tatsuya Nakadai, o segundo Cão Raivoso.

21.6.08

dos sotaques

Não percebi se o que disse foi que com ela sou um better man ou se com ela sou um bitter man.
Estou, naturalmente, mais inclinado para a segunda opção.

20.6.08

those ghostly traces, photographs

unknown author

a hemeroteca 1.08

Escrevo este post de um dos meus locais (interiores) favoritos da cidade: a New York Public Library. O silêncio das salas do piso inferior contrasta com a movimentação e a algazarra urbana. Mesmo dentro da biblioteca os pisos da Sala Nobre são de evitar, repletos de turistas ruidosos e desrespeitosos que ignoram os avisos de 'no noise' e de 'no food or beverages’, passeando-se com bonés do Texas e copos de cola de litro que sorvem com insolência. Na sala 1.08 o sossego prevalece, a reflexão tem lugar próprio. As funcionárias distraem-se na leitura do periódico camufladas por pilhas intermináveis de impressos e folhetins. O ócio impera; no bom sentido.

18.6.08

o boato

Aquilo que Walter Benjamin classificou como o mais pequeno-burguês de todos os fenómenos sociais.
A altivez marxista, tal como a largesse aristocrática, sempre me fez sorrir.
Fotograma de 'Fatal Attraction', de Adrian Lyne

o 'carácter destrutivo'

Walter Benjamin descreve aquilo que será um carácter destrutivo. Não sei se quando escreveu o texto tinha alguém muito específico em mente —ou talvez esse alguém fosse ele— mas há por esse carácter, da parte de Benjamin, uma relação de adoração e desprezo; sentimentos que facilmente podemos nutrir por nos próprios (veja-se Hemingway por exemplo). Por vezes enaltece a independência social, a capacidade de decisão e o paradoxal optimismo dentro da esfera destrutiva, a par da liberdade, mas por vezes critica o egoísmo, o desinteresse e o pessimismo assumido (que, convenhamos, será a coisa mais natural a um carácter do género).

Ressalta que o Carácter Destrutivo tem a consciência do Homem Histórico, cuja mais profunda emoção é uma insuperável desconfiança do decorrer dos eventos e uma predisposição em todos os momentos de como tudo pode acabar mal. Depois termina explicando que o Carácter Destrutivo vive pela ideia de que embora a vida não seja digna de ser vivida, o suicídio não vale seguramente o esforço de ser cometido.

Walter Benjamin suicidou-se nos Pirenéus espanhóis em Setembro de 1940.

16.6.08

a geografia íntima

O corpo como a cidade; as ruas como os braços e as pernas; os becos como as mãos; o parque como o torso; os sons urbanos como os suspiros suaves, as palavras amáveis, os códigos de benquerença. A exploração de um território —pele ou alcatrão— e as descobertas constantes. Como numa cidade e na sua geografia urbana também os lugares específicos das geografias íntimas ficam alojados na memória dos cinco sentidos. Depois um dia virá a partida, o último momento em que se percorrem aquelas ruas, se reconhecem aqueles sinais e por fim se avista já muito ao longe a silhueta da cidade.

le samouraï

'Le Samourai', de Jean-Pierre Melville

Alain Delon, o samurai de Melville, a fumar um cigarro na cama a olhar para o tecto. No fundo, o descanso do guerreiro; aquele breve momento antes de a acção recomeçar.
Para samurais intemporais.

a midnight valium for a good night sleep

Chegou ao ponto de confundir cansaço com cobardia. Mas é um erro; está enganada. Enquanto a cobardia implica uma fuga ou inacção por medo, o cansaço revela antes uma saturação, um desinteresse progressivo. E quando há desinteresses progressivos já não há pachorra para pegar nas armas.

13.6.08

da vida

Não, não é este blogue que anda em contenção. Sou eu.
O blogue apenas come por tabela.

10.6.08

chinatown

Embora fique no caminho de casa já não paro por lá como no Inverno. A noite, a neve e a chuva —a trindade a que o Symons chamava de apelo obscuro e incontrolável— traziam-lhe uma decadência misteriosa, sendo os únicos protagonistas das ruas vazias os néones multicolores e os seus reflexos no piso molhado. Agora os dias são mais longos; o tempo decente. Os turistas varrem Canal Street até à Mott, onde compram lembranças, contrafacções, imitações e outras curiosidades de feira. Outros há, mais audazes, que levados por guias cheios de manhas e brilhantina visitam em grupo fábricas-de-roupa clandestinas. Estão para os lados da White Street, numas ruelas discretas, escondidas em fachadas maltratadas de tijolo.

Sentem a emoção do submundo: a escada insalubre, os caracteres pintados nas paredes descascadas e por fim os três toques ritmados em jeito de código na porta de ferro. Abre-se o postigo e comprova-se o olhar cúmplice. Depois é vê-los, em fila indiana, de máquinas fotográficas a estalar flashes nos rostos obedientes de mulheres que trabalham em turnos de doze horas seguidas. E saem eufóricos, orgulhosos da sua descoberta genuína. Para trás ficam as operárias, que se riem para dentro daqueles turistas histriónicos que simulam solidariedade em sorrisos de falsa compaixão. E fico eu, que já lá estava, escondido no topo das escadas a ver a triste procissão passar.

o seu duplo perene

8.6.08

99 fahrenheit

Pensava em Conrad; pensava nas personagens de Conrad, reflexos de outros homens e usurpadores imaginários de aventuras reais. Via a imagem da calmaria melancólica do Pacífico, ao longo da linha do Equador tantas vezes por ele descrita e agora inconscientemente gravada na minha memória —na memória das coisas que ainda não vi nem vivi. Pensava nesses homens nos Mares do Sul, encurralados debaixo de um calor seco e sufocante, que devido à ausência de vento talhavam esculturas em madeira para passar o ócio forçado pela inércia. E na loucura que chegava a alguns, depois de tantos dias de espera, desespero e monotonia num mar parado.

Pensava em tudo isso debaixo do mesmo calor seco e sufocante. Procurei a estibordo a sombra da ponte de Brooklyn, ondulante na água escura e suja, e lá fiquei, estático por momentos, sem vento ou motor, suavemente embalado pela ocasional passagem de algum ferry-boat neste Domingo de inferno.

4.6.08

a janela indiscreta

Vim para o terraço comunitário do meu edifício, vazio e escuro, decorado com duas cadeiras de palha podre ao lado de uma taça metálica onde os gatos vadios bebem leite. Oiço-os algures por aí; talvez seja a ucraniana do terceiro esquerdo que os alimenta, mas não sei. O terraço não é alto, é apenas um sétimo andar, mas vejo mais à frente o Chrysler e à esquerda o pináculo iluminado do Empire. Observo o logradouro dos vizinhos e as vidas alheias. Lembro-me da 'Janela Indiscreta', inevitavelmente. Os vultos movimentam-se dentro dos espaços privados, dos universos de mil histórias. Ao contrário dos lugares-comuns do cinema não vejo casais a discutir, ou garotas de programa a perfumarem-se ou até mesmo um saxofonista em contraluz. Vejo apenas pessoas sozinhas, em frente a televisões que projectam reflexos nas paredes despidas. Há janelas abertas, sem estores ou cortinas, e há solidão. Há sobretudo solidão.

dos feitos

Reparo que no post anterior, desatento, escrevi no título 'dos feitios' quando na realidade queria escrever 'dos feitos'. Referia-me à capacidade, tal como Ahab em 'Moby Dick', de poder vir a realizar façanhas marítimas megalómanas; num futuro próximo ou talvez não. Mas parece-me, conhecendo o feitio irascível de Ahab, que o título acabou por ser apropriado.

Eu, com o meu feitio, talvez Ahab num futuro próximo. Ou talvez não.

3.6.08

dos feitios



Talvez num futuro próximo. Ou talvez não.

2.6.08

hoist the jib, trim the sail, point to close haul

Velejar tem sido das coisas boas que tenho feito nesta cidade. Descer o Hudson, com a ilha de Manhattan a bombordo, até passar Ellis Island e depois continuar para Sul e atravessar a Verrazano Bridge rumo à baía de Sandy Hook.

Mas o melhor de tudo é que estou finalmente apto para exercer as funções de skipper na América. O exame não foi difícil. Ou melhor dizendo, quem corre por gosto não cansa.