31.7.08
Esperava-te à porta das UN e na iminência da chuva corremos agarrados para a cobertura do Beekman. Com a vista da Queensboro Bridge e das árvores da Rooselvelt Island camufladas pelo denso nevoeiro falámos pela primeira vez do futuro. Não do teu ou do meu, que nos soaria sempre a um reflexo insignificante da disfarçada culpa burguesa, mas do das sombras que passavam pelas janelas dos edifícios em frente. De como falando do seu futuro lhes demos um passado; vidas e nomes a manchas solitárias que se sentiam por detrás das fachadas de vidro. E só depois de essa jogada esquiva e de outro gin tónico falámos de ti e de mim: de duas pessoas das quais uma não acredita em nada até prova em contrário e de outra que até prova em contrário acredita em tudo. Foi exactamente naquele princípio de noite chuvosa de Verão que encontrei em ti a minha antítese. E talvez o meu equilíbrio.
a impossibilidade de partir
Numa short-story de Paul Bowles encontro uma passagem magnífica sobre o porquê da impossibilidade de partir. Duas linhas cruas que me rasgam a fronte como uma navalha afiada.
29.7.08
da vastidão
Se em 'Samurai Rebellion' há uma fotografia minimalista e irrepreensível de Kazuo Yamada, o resultado alcançado na 'Condição Humana', com largas panorâmicas a preto e branco por Yoshio Miyajima, não lhe fica atrás. E na primeira parte, 'No Greater Love', há um terceiro protagonista na história paralela de Kaji e Michiko: a vastidão da paisagem nas minas da Manchúria.
Ou então, como disse o crítico do Village Voice Aaron Hillis, com estes scopes "John Ford called from beyond the grave; he wants his clouds back".
ainda sobre o cinema de kobayashi; a consciência social
A visualização de 'Ningen no Joken' ('A Condição Humana', 1959/61), épico de quase dez horas dividido em três partes, vem reforçar as impressões que tinha já sobre o cinema de Masaki Kobayashi. Contudo pareceu-me agora que para o cineasta, na 'Condição Humana', o sacrifício não é apenas um "discreto fio condutor" mas sim o mote. Alcançar a justiça e a honra é uma necessidade absoluta e imprescindível e o Sacrifício o único meio para o fazer.
Kobayashi, que como muitos outros na ressaca do neo-realismo italiano entendeu (e utilizava) o cinema como um veículo de crítica social, serviu seis anos no Exército Imperial Japonês, período do qual revela que despertou e afiou a sua consciência social. Recusou nesses anos qualquer promoção — mesmo durante a Segunda Guerra Mundial, na qual esteve sempre ao lado dos seus camaradas de trincheira. Em tal acto denunciou a brutalidade e a crueldade dos oficiais e o seu desprezo pela vida humana. E se por um lado aponta essa crueldade daqueles a que chamou os fascistas japoneses, por outro lado também não poupou o extremo dos socialistas soviéticos, mostrando que o ódio, o desprezo e a desumanidade, tal como em campos opostos o estoicismo e o sacrifício, fazem todos parte da condição humana.
Kobayashi, que como muitos outros na ressaca do neo-realismo italiano entendeu (e utilizava) o cinema como um veículo de crítica social, serviu seis anos no Exército Imperial Japonês, período do qual revela que despertou e afiou a sua consciência social. Recusou nesses anos qualquer promoção — mesmo durante a Segunda Guerra Mundial, na qual esteve sempre ao lado dos seus camaradas de trincheira. Em tal acto denunciou a brutalidade e a crueldade dos oficiais e o seu desprezo pela vida humana. E se por um lado aponta essa crueldade daqueles a que chamou os fascistas japoneses, por outro lado também não poupou o extremo dos socialistas soviéticos, mostrando que o ódio, o desprezo e a desumanidade, tal como em campos opostos o estoicismo e o sacrifício, fazem todos parte da condição humana.
26.7.08
lost my phone | lost in translation
Perdi o telemóvel na sexta-feira à tarde e com ele a lista de contactos. Entretanto liguei para a Missão e já tinhas saído para o fim-de-semana. Lembrei-me de teres mencionado algures os screenings do MoMA e atravessei a cidade num táxi a duzentos à hora. Quando lá cheguei já estava fechado.
Dizias 'Lost in translation'? melhor seria impossível.
Dizias 'Lost in translation'? melhor seria impossível.
24.7.08
de duas a seis semanas
Em Elisabeth Town, depois de atravessar o ghetto e cruzar toda a East Jersey Road chega-se finalmente àquele que é o maior porto da Costa Este dos Estados Unidos. Num diner ao lado da doca seca misturam-se as tripulações em terra com os empregados da alfândega e outros locais. Depois de interpelado, um segundo-imediato explicava-me que o tempo de duração da viagem poderá ser de duas semanas a mês e meio e que o que mais convêm é "não ter planos ou datas a cumprir a partir do momento em que se entra a bordo". Num cargueiro, ao contrário de num cruzeiro, factores como o tipo de carga ou as condições do mar fazem com que o tempo da viagem dependa sempre de um considerável conjunto de incógnitas.
Coisa que não fará mal nenhum; para o regresso (de férias ou não) à Europa tempo é coisa que tenho.
Coisa que não fará mal nenhum; para o regresso (de férias ou não) à Europa tempo é coisa que tenho.
**
Duas a seis semanas no mar sem ver uma única mulher? Parece que há alturas para tudo na vida, inclusive para grandes, grandes sacrifícios. Se assim for, restar-me-á a lap-dance da Diablo Cody via webcam que o Ricardo Gross me mostrou. Obrigado; não há como bad girls para manter um homem alive.
das pensões
Revelou-me alguma preocupação pelas condições a que aparentemente estaria a sujeitar-me. É certo que à primeira vista a pensão chinesa será de facto um local periclitante; mas há que ir mais atrás no tempo e relembrar outras geografias nocturnas solitárias. E depois de tal exercício, revendo a memória desses outros lugares no Sul da Ásia, na América Central ou no Magreb, a lodge de Chinatown não é mais do que um tímido parente afastado. E refiro-me por exemplo às noites em Chittagong, cidade onde fotografava as indústrias do Shipbreaking nos arrabaldes, e do pânico que os ataques suicidas do Jama'atul Mujahideen Bangladesh causaram: êxodo em massa temporário e um recolher obrigatório; ou também da noite na qual uma septicemia me fez vomitar sangue e tremer até à exaustão num bordel à beira da estrada a caminho de Bhavnagar. Dois casos apenas e vê-se imediatamente o óbvio: a pensão chinesa é um luxo asiático.
No worries about it.
No worries about it.
19.7.08
os dias do china hotel
Ao todo, desde que larguei o apt da Village, foram sete as noites passadas no cubículo 419 de uma lodge em Chinatown. O quarto andar desta pensão não funciona como os restantes três que alugam quartos a chineses no compasso de espera da partida para Boston ou Washington. Este último piso tem as características de uma Komuna. Nos corredores, que pertencem a todos, estende-se a roupa esfregada no lavatório metálico da casa-de-banho comum e lá se deixa a secar inundando o chão de água amarelada; é também onde se deixam os sapatos, os fogões portáteis, os tachos, as panelas e toda uma parafernália inimaginável de objectos. Nos cubículos pouco mais cabe do que uma cama; ou melhor, do que um catre. Uma ventoinha aparafusada à parede, no caso do meu, também cabe. Os anúncios em mandarim estão por todo o lado, tal como os jornais chineses cheios de gordura que servem de guardanapos. A zona de convívio é na plataforma exterior da escada ferrugenta de emergência. Todos ignoramos os sinais de 'proibido fumar'. Os comunitários são homens (e uma mulher) de todas as idades. Nenhum fala inglês; ou pelo menos nenhum fala inglês comigo. O diálogo é inexistente, fazendo com que eu não seja mais do que um exilado no exílio dos outros. Ignoram-me. Rejeitam-me. Não sou um deles.
Noite dentro percorro os corredores, de Hasselblad e fotómetro na mãos, e faço as fotos que hão-de ficar para a Posteridade como a prova destes dias de Purgatório.
Noite dentro percorro os corredores, de Hasselblad e fotómetro na mãos, e faço as fotos que hão-de ficar para a Posteridade como a prova destes dias de Purgatório.
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Eu sei que no meio dos chineses não sou um deles. Mas a questão é que acho cada vez mais que não sou um deles com quem e onde quer que esteja.
16.7.08
15.7.08
América; dez alíneas para uma viagem de 3000km
1) paisagem: nesta zona do país é verdejante e fresca, de suaves promontórios. Uma das principais actividades dos estados do Tennessee e da Virgínia é a criação de gado, a par da produção de algodão, no primeiro, e de tabaco, no caso do segundo. A paisagem revela isso mesmo. Longos pastos húmidos alternam com extensos campos de cultivo que acompanham a estrada por horas a fio. Igualmente extenso é o número de quintas que povoam a paisagem com a sua iconografia típica: a casa-mãe, o celeiro ao lado e a roda-de-vento. Tudo ao pôr-do-sol, como num quadro de Hopper.
2) urbanismo: o urbanismo das cidades norte-americanas é sempre o reconhecido, fácil e aborrecido grid-plan, no qual as ruas e avenidas se intersectam perpendicularmente originando uma quadrícula ou uma grelha urbana ortogonal. Assim ninguém se perde, o que acredito que visto nesses termos possa ser uma vantagem.
3) suburbia: numa terra de vastidão, a disposição das habitações nas zonas suburbanas não se traduz numa concentração em altura de tipologias multifamiliares, ou high-housing, mas sim na expansão territorial de tipologias unifamiliares. Este fenómeno é conhecido como Suburban Sprawl. Com base na quadrícula urbana ortogonal, referida na alínea anterior, os subúrbios estendem-se por quilómetros e quilómetros, fazendo com que a utilização do automóvel seja imprescindível ou mesmo obrigatória. É também nos subúrbios que se encontram os melhores vestígios da Americana, essa identidade tão explorada nos campos da Literatura e da Fotografia (e por vezes no cinema independente). A imagética do patriotismo e do consumismo inunda as ruas, os quintais, os autocarros escolares, as grandes superfícies comerciais e os parques de estacionamento.
4) cosmopolitismo: Tocqueville em 'De la démocratie en Amérique' já caracterizava o povo norte-americano como uma justaposição — e iminente conflito — de três diferentes raças: branca, negra, ameríndia. Quase dois séculos depois a raça índia, ou american native, tem uma percentagem insignificante na maior parte dos estados dos EUA; contudo uma outra raça — de génese ameríndia, mas diferente daquela que Tocqueville descreveu — assume-se como a terceira maior do país: a latino-americana. Actualmente cerca de 20% da população já é de expressão espanhola como a língua nativa. Apesar de esta mistura tri-racial ser claramente visível, os EUA não são um país essencialmente cosmopolita como o é a cidade de Nova Iorque, palco social onde coabitam todas as religiões e raças do mundo. Mesmo assim, no interior rural essa mistura tri-racial é também perceptível; sobretudo do ponto de vista económico, sendo quase sempre a raça indicador do presente status. As estatísticas apontam que 80% daqueles que vivem no limiar da pobreza sejam de raça negra. Isso é claro em todo o lado; cidade ou campo.
5) american owened: para os norte-americanos o termo red neck será algo como campónio. Não sendo ostensivamente ofensiva, a expressão tem mesmo assim um carácter pejorativo. Os Red Necks povoam o interior da América, têm sotaques que dão origem a escárnio e gozo e são tidos como culturalmente embaraçosos para a imagem global do Norte-Americano. Há neles também uma tendência xenófoba e racista. Xenófoba perante as hordas de emigrantes latino-americanos e racista perante os negros, obviamente, mas também em relação ao white trash, uma percentagem de brancos desempregados, párias sociais e vagabundos. A expressão 'american owened', que funciona como um rótulo, encontra-se frequentemente à beira da estrada, adjacente aos sinais de motéis, restaurantes e supermercados. No fundo, marca um território.
6) informação: a qualidade das notícias nos EUA está abaixo do nível mínimo exigido a um país democrático. Refiro-me apenas à televisão pública, pois oferece os noticiários mais merdosos que alguma vez assisti na minha vida. No espaço público, a informação que conta é negligenciada e enche-se a emissão com lixo noticioso, da escala local à global. Para informação ampla, diversificada e rigorosa há que pagar a cable tv. Também o acesso aos jornais diários de maior credibilidade é inexistente em diversas partes, estando apenas disponíveis os tablóides popularuchos. Até mesmo na cidade de Nova Iorque não é possível encontrar o NY Times nalgumas zonas do Harlem ou em Coney Island. Tudo isto demonstra que o direito e acesso a uma informação nítida está intrinsecamente ligado ao factor económico, fenómeno que origina posteriormente desinteresse e ignorância dos factos reais de uma grande percentagem da sociedade. E como as opiniões se baseiam em factos, convém que estes sejam correctos.
7) patriotismo: A América é o país dos patriotas. Nos subúrbios as bandeiras pululam de todas as janelas e alpendres. Igualmente por todo o lado se vêem autocolantes de Proud to be an American ou outros de apoio à guerra a às nossas tropas. A genérica utilização de armas de fogo por parte dos civis demonstra que tal não é apenas para "o direito à defesa pessoal, a primeira lei da Natureza" ou como "uma prevenção ao crime", como afirma a Tennessee Firearms Association, mas também para a protecção dos valores americanos: a protecção da Pátria, moral e fisicamente.
8) desperate housewives: parece-me que nos subúrbios a percentagem de mulheres consideradas domésticas é alta. Embora os seus gostos sejam discutíveis, apesar de que gostos não se discutem, as donas-de casa passeiam-se pelos supermercados arranjadas e provocadoras na sua sensualidade feminina. Algumas com os filhos, outras sozinhas, mas todas muito loiras e bronzeadas. Os subúrbios norte-americanos são o El Dorado para os apreciadores de milfs e para os jovens adultos do sexo masculino que cortam a relva nos dias de semana à tarde, enquanto os maridos delas estão a trabalhar.
9) alimentação: a maioria da disponível ao público é a das cadeias internacionais, e algumas locais, de fast-food. Os sinais a anunciar hambúrgueres, pizas, frango frito ou marisco frito a $2.99 estão espalhados repetidamente ao longo da estrada e nos centros urbanos. A oferta alimentar é barata e deplorável. Tudo vem com a (obrigatória por lei) tabela de nutrition facts, para que o consumidor tenha a noção da quantidade de calorias que ingere. Mesmo assim, este ano a América atingiu o maior número de casos de obesidade desde sempre. O plástico engorda. E em última análise faz pior que o tabaco, tal como a longo prazo as suas complicações serão mais dispendiosas ao estado.
10) geografia: todas as pessoas com quem me cruzei não sabiam onde fica Portugal. Mas também não é de estranhar. Eu próprio, antes desta viagem, também não sabia exactamente onde ficava o Tennessee, estado com quase 6 milhões de habitantes e que ocupa um território maior do que Portugal. É, como tudo na vida, uma questão de interesses; ninguém leva a mal.
**
Todas as alíneas reflectem as impressões apenas dos sítios por onde passei nesta viagem: Pensilvânia, Maryland, Virgínia e Tennessee.
2) urbanismo: o urbanismo das cidades norte-americanas é sempre o reconhecido, fácil e aborrecido grid-plan, no qual as ruas e avenidas se intersectam perpendicularmente originando uma quadrícula ou uma grelha urbana ortogonal. Assim ninguém se perde, o que acredito que visto nesses termos possa ser uma vantagem.
3) suburbia: numa terra de vastidão, a disposição das habitações nas zonas suburbanas não se traduz numa concentração em altura de tipologias multifamiliares, ou high-housing, mas sim na expansão territorial de tipologias unifamiliares. Este fenómeno é conhecido como Suburban Sprawl. Com base na quadrícula urbana ortogonal, referida na alínea anterior, os subúrbios estendem-se por quilómetros e quilómetros, fazendo com que a utilização do automóvel seja imprescindível ou mesmo obrigatória. É também nos subúrbios que se encontram os melhores vestígios da Americana, essa identidade tão explorada nos campos da Literatura e da Fotografia (e por vezes no cinema independente). A imagética do patriotismo e do consumismo inunda as ruas, os quintais, os autocarros escolares, as grandes superfícies comerciais e os parques de estacionamento.
4) cosmopolitismo: Tocqueville em 'De la démocratie en Amérique' já caracterizava o povo norte-americano como uma justaposição — e iminente conflito — de três diferentes raças: branca, negra, ameríndia. Quase dois séculos depois a raça índia, ou american native, tem uma percentagem insignificante na maior parte dos estados dos EUA; contudo uma outra raça — de génese ameríndia, mas diferente daquela que Tocqueville descreveu — assume-se como a terceira maior do país: a latino-americana. Actualmente cerca de 20% da população já é de expressão espanhola como a língua nativa. Apesar de esta mistura tri-racial ser claramente visível, os EUA não são um país essencialmente cosmopolita como o é a cidade de Nova Iorque, palco social onde coabitam todas as religiões e raças do mundo. Mesmo assim, no interior rural essa mistura tri-racial é também perceptível; sobretudo do ponto de vista económico, sendo quase sempre a raça indicador do presente status. As estatísticas apontam que 80% daqueles que vivem no limiar da pobreza sejam de raça negra. Isso é claro em todo o lado; cidade ou campo.
5) american owened: para os norte-americanos o termo red neck será algo como campónio. Não sendo ostensivamente ofensiva, a expressão tem mesmo assim um carácter pejorativo. Os Red Necks povoam o interior da América, têm sotaques que dão origem a escárnio e gozo e são tidos como culturalmente embaraçosos para a imagem global do Norte-Americano. Há neles também uma tendência xenófoba e racista. Xenófoba perante as hordas de emigrantes latino-americanos e racista perante os negros, obviamente, mas também em relação ao white trash, uma percentagem de brancos desempregados, párias sociais e vagabundos. A expressão 'american owened', que funciona como um rótulo, encontra-se frequentemente à beira da estrada, adjacente aos sinais de motéis, restaurantes e supermercados. No fundo, marca um território.
6) informação: a qualidade das notícias nos EUA está abaixo do nível mínimo exigido a um país democrático. Refiro-me apenas à televisão pública, pois oferece os noticiários mais merdosos que alguma vez assisti na minha vida. No espaço público, a informação que conta é negligenciada e enche-se a emissão com lixo noticioso, da escala local à global. Para informação ampla, diversificada e rigorosa há que pagar a cable tv. Também o acesso aos jornais diários de maior credibilidade é inexistente em diversas partes, estando apenas disponíveis os tablóides popularuchos. Até mesmo na cidade de Nova Iorque não é possível encontrar o NY Times nalgumas zonas do Harlem ou em Coney Island. Tudo isto demonstra que o direito e acesso a uma informação nítida está intrinsecamente ligado ao factor económico, fenómeno que origina posteriormente desinteresse e ignorância dos factos reais de uma grande percentagem da sociedade. E como as opiniões se baseiam em factos, convém que estes sejam correctos.
7) patriotismo: A América é o país dos patriotas. Nos subúrbios as bandeiras pululam de todas as janelas e alpendres. Igualmente por todo o lado se vêem autocolantes de Proud to be an American ou outros de apoio à guerra a às nossas tropas. A genérica utilização de armas de fogo por parte dos civis demonstra que tal não é apenas para "o direito à defesa pessoal, a primeira lei da Natureza" ou como "uma prevenção ao crime", como afirma a Tennessee Firearms Association, mas também para a protecção dos valores americanos: a protecção da Pátria, moral e fisicamente.
8) desperate housewives: parece-me que nos subúrbios a percentagem de mulheres consideradas domésticas é alta. Embora os seus gostos sejam discutíveis, apesar de que gostos não se discutem, as donas-de casa passeiam-se pelos supermercados arranjadas e provocadoras na sua sensualidade feminina. Algumas com os filhos, outras sozinhas, mas todas muito loiras e bronzeadas. Os subúrbios norte-americanos são o El Dorado para os apreciadores de milfs e para os jovens adultos do sexo masculino que cortam a relva nos dias de semana à tarde, enquanto os maridos delas estão a trabalhar.
9) alimentação: a maioria da disponível ao público é a das cadeias internacionais, e algumas locais, de fast-food. Os sinais a anunciar hambúrgueres, pizas, frango frito ou marisco frito a $2.99 estão espalhados repetidamente ao longo da estrada e nos centros urbanos. A oferta alimentar é barata e deplorável. Tudo vem com a (obrigatória por lei) tabela de nutrition facts, para que o consumidor tenha a noção da quantidade de calorias que ingere. Mesmo assim, este ano a América atingiu o maior número de casos de obesidade desde sempre. O plástico engorda. E em última análise faz pior que o tabaco, tal como a longo prazo as suas complicações serão mais dispendiosas ao estado.
10) geografia: todas as pessoas com quem me cruzei não sabiam onde fica Portugal. Mas também não é de estranhar. Eu próprio, antes desta viagem, também não sabia exactamente onde ficava o Tennessee, estado com quase 6 milhões de habitantes e que ocupa um território maior do que Portugal. É, como tudo na vida, uma questão de interesses; ninguém leva a mal.
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Todas as alíneas reflectem as impressões apenas dos sítios por onde passei nesta viagem: Pensilvânia, Maryland, Virgínia e Tennessee.
14.7.08
10.7.08
da road-trip
E quando dei por mim estava já nos arrabaldes de Nashville, no Tennessee, abrigado de uma tempestade de Verão com ventos que partiam ramos de árvores, e a escutar na televisão, como todos os demais naquele diner, as impressões do ataque ao consulado norte-americano em Istambul. E para já uma coisa é verdade: Nova Iorque não é América. Nunca um lugar-comum foi tão verdadeiro.
8.7.08
o cinema de Kobayashi; quando o sacrifício compensa
O cinema de Masaki Kobayashi possui aquela característica subliminar comum a todos os românticos de que o sacrifício, em prol de algo maior, compensa. Tal não é mostrado de uma forma explícita ou voluntária, como num opúsculo católico medieval; é antes um discreto fio condutor que une a narrativa e aparece na forma da procura do sentido de justiça. Essa procura — ou o acto de sacrifício — camufla e atenua o sofrimento, pois atingir o resultado — ou o justo — é a aspiração maior das suas personagens.
Comparando 'Samurai Rebellion' (1967) e 'Black River' (1957), cujos cenários de acção são física e temporalmente díspares, sente-se em ambos a mensagem de que na luta pelos ideais e pela liberdade vale a pena perder tudo — inclusive a vida. Mas para isso, claro está, o Ideal tem de superar a Cobardia.
No cinema de Kobayashi, ao contrário de na Doutrina Estóica, Sofrimento e Paixão existem como uma opção pessoal, prevalecendo sobre a Razão. Comigo, terei de acrescentar, passa-se exactamente a mesma merda. Agora veja-se onde isso me deixou.
Comparando 'Samurai Rebellion' (1967) e 'Black River' (1957), cujos cenários de acção são física e temporalmente díspares, sente-se em ambos a mensagem de que na luta pelos ideais e pela liberdade vale a pena perder tudo — inclusive a vida. Mas para isso, claro está, o Ideal tem de superar a Cobardia.
No cinema de Kobayashi, ao contrário de na Doutrina Estóica, Sofrimento e Paixão existem como uma opção pessoal, prevalecendo sobre a Razão. Comigo, terei de acrescentar, passa-se exactamente a mesma merda. Agora veja-se onde isso me deixou.
7.7.08
a máscara de nixon
O Caçador, à semelhança de Mailer, também não gostava de presidentes republicanos.
A foto: 'Nixon Mask', por Hunter S. Thompson.
the football season is over
Hunter Stockton Thompson aos 67 fartou-se e enquanto a nora e o neto jogavam na sala do lado, o seu filho lhes tirava uma fotografia e a mulher falava do ginásio com ele ao telefone, estoirou os miolos com um revólver .45 da sua colecção de armas de fogo. O bilhete que entregara quatro dias antes à sua mulher, com o título 'The football season is over', foi entendido como a nota de suícidio:
"No More Games. No More Bombs. No More Walking. No More Fun. No More Swimming. 67. That is 17 years past 50. 17 more than I needed or wanted. Boring. I am always bitchy. No Fun — for anybody. 67. You are getting Greedy. Act your old age. Relax — This won't hurt".
**
Repito o post que escrevi pouco depois da morte Hunter S. Thompson (1937-2005) para assinalar a estreia de 'Gonzo: The Life and Work of Hunter S. Thompson'. O documentário, carregado de testemunhos de pessoas que de algum modo acompanharam Hunter —de amigos a políticos— e de dezenas de vídeos de arquivo mostrando-o nas mais diversas actividades, foca os momentos-chave do escritor/jornalista norte-americano: a reportagem, como elemento infiltrado, sobre os Hells Angels (que lhe valeu uma valente sova quando foi descoberto); a candidatura 'Freak Power' a xerife de Pitkin County no Colorado; a célebre viagem que deu origem ao livro 'Fear and Loathing in Las Vegas'; a criação do Gonzo Journalism; os anos da Rolling Stone; a dedicação a McGovern nas Primárias do Partido Democrata de '72 e os últimos anos passados em Woody Creek numa vertigem de drogas, como sempre, orgias e armas de fogo.
Vinte anos antes de morrer descreveu para uma câmara, com as montanhas do Colorado como cenário, como seria naquele sítio o seu funeral. Quando o dia chegou os amigos fizeram-lhe a vontade.
"No More Games. No More Bombs. No More Walking. No More Fun. No More Swimming. 67. That is 17 years past 50. 17 more than I needed or wanted. Boring. I am always bitchy. No Fun — for anybody. 67. You are getting Greedy. Act your old age. Relax — This won't hurt".
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Repito o post que escrevi pouco depois da morte Hunter S. Thompson (1937-2005) para assinalar a estreia de 'Gonzo: The Life and Work of Hunter S. Thompson'. O documentário, carregado de testemunhos de pessoas que de algum modo acompanharam Hunter —de amigos a políticos— e de dezenas de vídeos de arquivo mostrando-o nas mais diversas actividades, foca os momentos-chave do escritor/jornalista norte-americano: a reportagem, como elemento infiltrado, sobre os Hells Angels (que lhe valeu uma valente sova quando foi descoberto); a candidatura 'Freak Power' a xerife de Pitkin County no Colorado; a célebre viagem que deu origem ao livro 'Fear and Loathing in Las Vegas'; a criação do Gonzo Journalism; os anos da Rolling Stone; a dedicação a McGovern nas Primárias do Partido Democrata de '72 e os últimos anos passados em Woody Creek numa vertigem de drogas, como sempre, orgias e armas de fogo.
Vinte anos antes de morrer descreveu para uma câmara, com as montanhas do Colorado como cenário, como seria naquele sítio o seu funeral. Quando o dia chegou os amigos fizeram-lhe a vontade.
6.7.08
american surfaces
Afinal as caixas não ficaram num armazém em Brooklyn mas num cubículo em Chinatown; o essencial é que com elas deixo para trás outras coisas que não me interessam nos próximos tempos: as team meetings, as conference-calls, a 'hora-de-almoço' e o par de sapatos ingleses em dias de Client Presentation — tudo o que me lembra a vida das nove às cinco. Agora, na pequena mochila de lona que trago comigo renego o supérfluo, resumo o essencial: um par de livros, as máquinas-fotográficas, este laptop (um supérfluo essencial), uns calções de banho e apenas meia-dúzia de peças de roupa, pois nesta terra de autómatos há laundromats por todo o lado.
Com o 'The Americans' de Robert Frank e o 'American Surfaces' de Stephen Shore no horizonte, estou finalmente pronto para a road-trip pela América; daqui até não-sei-ainda-bem-onde.
Até onde der, calculo.
Com o 'The Americans' de Robert Frank e o 'American Surfaces' de Stephen Shore no horizonte, estou finalmente pronto para a road-trip pela América; daqui até não-sei-ainda-bem-onde.
Até onde der, calculo.
4.7.08
the fourth of july
Hoje, o 'Independence Day'. E não poderia ser mais rigoroso dizer que para além de assinalar a data da promulgação da Declaração de Independência da América em 1776 assinala a minha também. Literalmente.
2.7.08
os despojos da vida
Revejo as caixas seladas com fita adesiva; as dos livros, as que contêm a roupa de casa e um par delas com os casacões de Inverno. O espaço agora parece maior, mais luminoso, de paredes brancas despojadas dos postais e fotografias, apenas com os caixotes castanhos de papelão e um par de malas pretas gigantes a um canto ao pé da porta; há também algumas peças de mobiliário, macabramente embrulhadas em plástico negro. No bolso tenho a direcção de um armazém em Brooklyn que aluga parcelas de quatro metros cúbicos para arrumos por sessenta dólares ao mês. Abro a porta da rua e assobio, como nos filmes, ao próximo táxi que passar.
Para Brooklyn, se faz favor, antes de a noite cair.
Para Brooklyn, se faz favor, antes de a noite cair.
a midnight valium for a good night sleep
Reforça Borges, em 'Siete Noches', que nas 'Mil e Uma Noites, os Contos de Sherazade' há fortes ecos do Ocidente que se infiltraram na oralidade oriental. Sinbad 'o Marinheiro', magno herói da epopeia popular persa, não é mais do que um avatar de Ulisses, o errante rei de Ítaca. Ainda sobre o mesmo tema o escritor argentino menciona os confabulatores nocturni, homens misteriosos que à semelhança de Sherazade —embora com diferentes propósitos— relatavam contos durante a noite. Ao que parece, o primeiro homem a reunir estes confabulatores nocturni foi Alexandre da Macedónia, utilizando-os precisamente como distracção perante as insónias.
Relembro-me da praça Jemaa El Fna em Marraquexe, Património da Humanidade pela Oralidade, cujo nome significa 'Assembleia dos Mortos', onde ainda hoje é possível ver os contadores de histórias distraírem pequenas multidões depois de o sol cair.
No fundo, os confabulatores nocturni são o Valium da pré-modernidade. Que se escreva isso lá nas sebentas da Clássica.
Relembro-me da praça Jemaa El Fna em Marraquexe, Património da Humanidade pela Oralidade, cujo nome significa 'Assembleia dos Mortos', onde ainda hoje é possível ver os contadores de histórias distraírem pequenas multidões depois de o sol cair.
No fundo, os confabulatores nocturni são o Valium da pré-modernidade. Que se escreva isso lá nas sebentas da Clássica.