2.12.12

o princípio

Porque tudo tem um fim.

29.11.12

o quinto império

Kierkegaard – que afinal não casou – dedicou alguma prosa e pensamento ao assunto. No único livro que li seu pode ler-se logo ao início o lema Shakespeareano ‘better well hanged tan will wed’. Porém, ao contrário de um Shakespeare irónico, o dinamarquês compreendia que a parte nefasta no casamento poderia vir de si. Na sua vida encontramos a prova: aos vinte e seis anos enamorou-se de Regine Olsen, de quinze, propô-la em casamento, ao qual ela disse que sim, e cerca de um ano depois cancelou, deixando-a. Durante esse período percebeu que a sua excessiva melancolia iria aniquilar a energia e a virtude intocável de Olsen. A sua verdade no amor, apetece dizer, foi o altruísmo. Por outro lado, podemos pensar que foi fraco por acreditar que não melhoraria pelo amor, o que nesta linha leva a concluir que a cobardia foi a sua pequena mentira. 

 *** 
Quanto a mim, que também reconheço no meu carácter e espírito uma certa melancolia e outros defeitos, decidi prosseguir com uma decisão que partiu de mim mas que foi recebida com felicidade, nervoso miudinho e paixão. Sabia, no entanto, que corria o risco de poder vir a corromper um lado inocente e sonhador que deveria ser conservado para sempre. Ao ter consciência de um possível embrutecimento provocado pela rudeza do meu carácter e mesmo assim avançar, a minha verdade não seria mais do que o egoísmo. Não obstante, em toda a sua ingenuidade e candura havia da mesma forma uma obscuridade que ultrapassava em muito a minha melancolia. A esse lado negro procurei levar luz, o que poderia indicar que a minha verdade fosse afinal o altruísmo. Foi nesta segunda construção que tentei enganar-me a mim mesmo. Mas logo em seguida deixei-me de coisas: essa verdade seria uma grande mentira. Como a pequena mentira do Kierkegaard foi a sua verdade.

a single page


da mente e do corpo

Faço o meu melhor tempo de sempre desde que comecei a correr no tartan do McCarren Park há quatro anos atrás. Não sei o que isto significará: se será uma melhor forma —relacionado com o físico ou um maior estoicismo relacionado com a psique. Inclino-me para a segunda.

27.11.12

o delator

Durante algum tempo confundi pobreza de carácter com pobreza de espírito. Ao reajustar as definições reparo que fui o maior delator de mim próprio e, como muitos deles, falso, injusto e manipulador.

Que o delator acabe na guilhotina.

the extra mile

No jogging há sempre um momento em que o esforço aparenta ser insuportável para o corpo mas a mente tem a capacidade de ainda o prolongar sem entrar em batotas e subterfúgios. No jogging, como em tantas outras coisas, o carácter afinal conta.

25.11.12

a alegoria do vazio (2)



James Turrell's "Roden Crater" (1979-2011), Arizona, US.

23.11.12

A city of virtue.
A scenario for falsehood. A stage for failure.
An imaginary landscape of old ideas.
The Roman Empire sets its values and dogmas again.
Only for its consequent fall; consequent disaster.
"Everybody knows the battle was fixed".
Except the fighter. Except the soldier. Except myself.

17.11.12

the first of the gang to die

Vejo o camião que vem a larga velocidade à minha direita apanhar-me pelo flanco. Oiço ainda o chiar dos travões, o baque seco da colisão, o esmagamento dos ossos e o tecido muscular rasgar-se em pedaços pelos pneus robustos. Continuo a atravessar a rua e do passeio olho para a cena com calma. Transeuntes gritam em terror, o condutor está boquiaberto e apático, com um olhar incrédulo para o meu corpo desfeito como uma boneca de trapos. Ninguém sabe o que fazer e penso que talvez seja melhor eu pedir a alguém que chame uma ambulância para ir recolher aquela massa inerte transformada em cadáver. Observo com atenção e vejo que não é preciso preocupar-me. Uma mulher de meia-idade está já de telemóvel na mão a reclamar ajuda. Umas adolescentes choram e o senhor indiano da mercearia anda aos círculos, em transe, talvez por conhecer-me há muito tempo e estar em choque com o sucedido. Reparo que a minha carteira está a uns metros do corpo. Pergunto-me quem a levará, se os paramédicos a recolherão para a colocar num saco de plástico transparente ou não. Foi nesta mesma esquina que há uns meses uma senhora idosa escorregou e ficou imóvel no chão. Da minha casa ouvi o alarido das pessoas que a ajudavam e levei uma pequena manta para lhe colocarem debaixo da cabeça. Essa manta foi com ela na maca quando a levaram e eu nunca a recuperei nem interesse tive nisso. Estou nesse mesmo ponto que estava há uns meses quando a ambulância chega e vejo os paramédicos dirigirem-se ao meu corpo da mesma forma que se dirigiram ao da senhora idosa. As pessoas são agora muitas que se amontoam para ver de perto um morto. O óbito é declarado no local e enfiam o meu cadáver num saco preto. A carteira é recolhida num outro, transparente. A ambulância parte, os transeuntes dispersam em sussurros. Volto para casa a pensar no ocorrido. Disseste-me um dia que eu teria de morrer para nascer de novo. Parece-me que foi o que aconteceu.

3.11.12

the aftermath (2)

Foi dessa forma, sem querer ou pensar muito no assunto, que de repente me vi arrastado pela metrópole escura e vazia ou pelo menos pela parte dela que está nessas condições e que por três dias consecutivos esperei que a noite caísse para voltar a cruzar a ponte em tão solitárias incursões nocturnas, de bicicleta e câmara de grande formato, com um saco do tripé que ecoa ao de uma carabina, artilhado como um mercenário errante, sem grande rumo ou objectivo pessoal conhecido de antemão, apenas o de deambular e tirar chapas, que levam o seu tempo a montar o equipamento, a medir a luz ou a falta dela, a focar a lente, a ajustar a perspectiva, guiado pelo luar que escapa entre as nuvens espessas que cobrem a cidade, e só deixar-me voltar a casa, deixar-me a voltar a cruzar a ponte, depois dessa necessidade intrínseca e noctívaga satisfeita como uma amante exigente, voltar a casa, dizia eu, de rastos, com o peso adicional do cansaço às costas, para cair vestido na cama e só dar conta de mim mesmo nas primeiras horas da luz da manhã. 

31.10.12

the aftermath

Só no seu rescaldo tive por fim uma visão ampla das mortes e estragos causados pelo furacão. Por duas razões: a) ter novamente acesso a informação actualizada que descreveu com minúcia todo o impacto, de Jersey a Long Island; e b) ver em primeira mão algumas das zonas afectadas. Passei dezoito horas na minha bicicleta a percorrer a cidade. Vi as caves inundadas em Red Hook, com os passeios cheios de detritos e os residentes desolados; e as árvores e os taipais arrancados de Carrol Gardens a Fort Greene, Brooklyn. Em Manhattan, de Battery Park a Wall Street, o excesso de água ainda corria livremente pelas ruas. Por todo Downtown até Midtown encontravam-se fachadas e passeios desfeitos, filas à porta das mercearias e supermercados que, à luz de velas e lanternas, tentavam ajudar os clientes com bens de primeira necessidade. Quase um milhão de pessoas sem electricidade. Nestes termos, a noite foi um caso particular e sombrio. Do ponto central da Williamsburg Bridge era possível ver metade da ilha num apagão total. Deambular pelas ruas de Manhattan nestas condições foi ainda mais assustador. Tudo estava irreconhecível, sem formas nem pontos comuns. A geografia do quotidiano desaparecera. Guiei-me apontando a lanterna às placas com os nomes das ruas nos cruzamentos. Não havia outras referências visíveis para além destas: nem um néon, um bar, um interior de um banco, nada. / Anoto: 

         Uma cidade nocturna é perigosa; uma cidade às escuras é mortífera. Todos são suspeitos, todos são o perigo — todos agem com cautela e se esquivam. Na escuridão não se distingue o samaritano do atacante. Uma metrópole mergulhada no breu é um palco de todas as indefinições e incertezas, purgatório terreno de muitos arrependidos. 

Regresso já noite dentro a Williamsburg, a casa, pela ponte que leva mesmo nome. Revejo mais uma vez o cenário de negrume e incertezas atrás de mim, onde unicamente as luzes das dezenas de carros-patrulha trazem animação e quem sabe consolo. Todas as fachadas estão escuras, sem luz. Tal como metade da ponte —a metade de Manhattan. Pequenas multidões atravessam-na para algo melhor em Brooklyn, num semi-êxodo urbano que me faz ecoar a definição de Paul Virilio no seu Futurism of the Instant: um dia todos seremos exilados e refugiados sem nações, apenas homens e mulheres em fuga.

30.10.12

twenty four hours with Sandy (2)

Sem ter ido a lado algum, sinto-me dentro de um jet-lag de mim mesmo.

twenty four hours with Sandy

Horas antes do furacão Sandy chegar à cidade o meu portátil, num timing perfeito, pifou. Passei as seguintes vinte e quatro do recolher forçado num blackout informativo: sem computador desde o lanche, sem telemóvel desde o Natal, sem rádio ou televisão desde sempre, a minha percepção da evolução da tormenta deu-se pela mais empírica das formas: espreitar por entre a fita preta colada nas janelas e ver se a árvore da frente ainda estava de pé ou não. Dediquei-me à leitura. Li o "Correction" do Bernhard quase de uma ponta à outra; li Artaud, Barthes, o catálogo Ikea por duas vezes e a posologia dos antibióticos para a minha infecção do ouvido esquerdo. Li também os menus dos restaurantes chineses, mexicanos, italianos, vietnamitas e um crioulo que se amontoavam na caixa do correio. Sem telefone ou internet fiquei sem saber se algum deles entrega em tempos de furacão. Talvez o crioulo, por ser do Caribe, possa estar habituado a estas coisas. Comi então pão com queijo e duas latas de salsichas; e bebi leite meio-gordo e água engarrafada à discrição, tudo fruto das minhas compras pré-catástrofe na sexta-feira anterior. Fiz abdominais, flexões, limpei o pó e ataquei o saco da lavandaria com os vinte e oito pares de meias para emparelhar. No final sobrou uma que usei para olear os travões e as correntes das bicicletas. Aproveitei o tempo livre para esquissar e cheguei mesmo a fazer uma "composição abstracta a pastel" muito bonita que foi directa para o caixote do lixo depois de acabada. Fiz mais abdominais, mais flexões e bebi um pouco mais dos oito litros de água engarrafada da minha reserva pessoal. Com a ajuda de um livrinho que comprei numa feira da ladra treinei código-morse no tecto com a minha lanterna nova. E aprendi a fazer um relógio de sol às escuras. A árvore continuava no passeio quando adormeci. Tal como quando acordei. O furacão entretanto já tinha passado, deixando tudo escaqueirado à sua volta.

28.10.12

the killers

A cidade começou a semana com o incompreensível acto tresloucado do esventramento de duas crianças pela ama dominicana. Lupica, na sua verborreia sensacionalista típica, escrevia no tablóide Daily News que o crime chegara ao Upper West Side. Entretanto, no rescaldo da atroz notícia, as autoridades confirmavam a rota de Sandy, o furacão assassino que atravessou o Caribe. Num prenúncio de devastação, todos se preparam para o embate de hoje à noite. Repetem-se os preparativos do ano passado; repetem-se os esvaziamentos dos stocks de água engarrafada, pilhas e lanternas nos supermercados. Escrevo estas linhas na laundromat da esquina. E espero. Espero sem saber bem o quê. 

Não são ainda oito da manhã.
Time is a killer too.

24.10.12

suave

Foi numa daquelas suaves certezas, prosaica e aligeirada de certos requintes, que se dera conta da tamanha dimensão do disparate. Tentou não se importar demasiado, o indivíduo de carácter fraco, ao deixar fechar atrás de si a porta para quem quer que o seguisse. Excepto pelo simples facto de ter entalado a própria cauda. O que, descobriu mais tarde, acabara por ser uma vantagem. Ao entalar a cauda perdera-a e deixara assim —de uma vez por todas— de ser aquele reconhecido primata.

21.10.12

one day

The wound? Profound. 
But healed. 
One day
will become a larger scar;  
even more grotesque, 
than
one day
the wound itself was.

Unknown, undated, untruth.

19.10.12

a alegoria do vazio



Para que não se deixe passar assim a contemporaneidade a olhos vistos, sem torpor ou pudor. Que de contemporâneo tem afinal tão pouco. O momento mais kierkegaardiano da actualidade não é um salto de um homem para o vazio, como em Yves Klein, mas antes um vórtice do vazio para dentro de um homem. Aqui é quando o mundo pára. O que resta é Fé.

17.10.12

unknown

Perhaps anonymous, perhaps a lie.

12.10.12

how it was


Miroslaw Balka, 'How it Is', Tate Modern, Londres, 2009

6.10.12

the future was ours

Escrevia no meu caderno de bolso o «futuro era nosso até ao dia em que passou a deixar de sê-lo». Depois olhei para aquele chavão e rasguei a página. Para além de ser uma grande merda era igualmente uma grande mentira. O futuro nunca foi nosso; somente o passado. Nosso e de muitos mais.

1.10.12

the honourable coward

É talvez durante os últimos anos da infância que os primeiros sinais se mostram visíveis aos olhos dos adultos, porventura mais sábios dos que os de uma criança. Ao chegar à adolescência, os defeitos de carácter tornam-se então mais definidos e perceptíveis ao próprio, cuja inocência em declínio tende ainda a ignorá-los e muito menos a encará-los. Durante os anos de amadurecimento do princípio da idade adulta há finalmente um reconhecimento pessoal desses mesmos defeitos e uma consequente luta interior para tentar aniquilá-los num cândido começo ou minimizá-los, num último esforço. Mas a meio dos trinta percebe-se a posição de desvantagem em tentar contornar os desígnios de Deus. E olhamo-nos a sério ao espelho. Os defeitos, melhores ou piores, circulam à nossa volta como um véu; e estão actos passados para provar que todos eles são bem mais reais do que apenas produtos da nossa imaginação ou auto-exigência. Não desistir da sua melhoria parece ser sempre o mais acertado. Mesmo quando o derrotismo é um dos ditos defeitos.

27.9.12

leap of faith, leap to faith

Queixei-me dos sucessivos fracassos dos meus saltos de fé. Uns atrás dos outros; uns atrás de tantos outros. Agora, como Kierkegaard, o que preciso não será um salto de fé mas de um salto para a Fé. —Antes de exigir há que acreditar.

16.9.12

1951


Robert Rauschenberg with White Paint.
Robert Rauschenberg with white socks.

15.9.12

notes from underground

Notas do Subterrâneo (Notes from Underground na versão inglesa) entre sarcasmo e confissão soa mais do que tudo a um elogio da derrota pessoal perante o colectivo a sociedade, num acto único e niilista. Não deve ser visto de todo como uma apologia à procrastinação, por um lado, ou à amargura individual, por outro. Como o próprio autor afirma, gostaria ele de ser chamado de preguiçoso, porque assim ao menos seria alguma coisa. E ser alguma coisa é (in)digno apenas dos homens banais. Quase o mesmo se poderá dizer que o autor aplicaria à tristeza ou à melancolia a mesma regra, se as pudesse sequer sentir. Sentimentos desses são fraquezas demasiado mundanas e mesquinhas.

A percepção da vitória pela derrota não é um conceito fácil de aceitar e não estará por isso ao alcance  dos que se crêem pessoas de ambição. É uma vitória de outra espécie. Menos declarada e cheia de ressentimento & desprezo pela escumalha alheia. Vence porque renega à partida noções platónicas como a felicidade, o amor, a verdade. Este entendimento antecipa assim problemas pela omissão, por uma inexistência. Previne a desilusão.

Em parte, Rohmer a isso dedicou o seu cinema. Contudo fê-lo de uma forma antagónica a estas notas de Dostoievski. Em Rohmer não há o grito da vitória da derrota na forma de um solilóquio interminável e explícito. Há, isso sim, um leve murmúrio entre todos aqueles actos falhados, subtis, onde afinal tão-pouco conforta muito.

3.9.12

labor day, monday

Percorro o bairro de bicicleta numa rotina pessoal. Não encontro nada mais do que uma calmaria resoluta e ruas vazias, como se todos os moradores tivessem decidido sair da cidade neste fim-de-semana prolongado. Passo pelo parque, pela beira-rio, pelo diner de esquina: tudo deserto  «desertado», apetece dizer  , abandonado. Como um acto colectivo que servisse para nada mais do que acentuar a geografia da minha solidão. Uma atmosfera desfocada e sem detalhe proporcionada pelo estranho contraste entre os dias comuns e o dia de hoje, feriado nacional, na qual apenas o esforço das pedaladas me traz de volta à realidade. Não por muito tempo. A velocidade abranda até parecer que estou inerte, a flutuar, com o vento a esbarrar-me no focinho por barbear. Continuo sem dar conta. E aos poucos com a chegada do sol da manhã lá revejo outros lobos solitários que como eu passam discretos sem se anunciar. 




2.9.12


«I could not become anything; neither good nor bad; neither a scoundrel nor an honest man; neither a hero nor an insect. And now I am eking out my days in my corner, taunting myself with the bitter and entirely useless consolation that an intelligent man cannot seriously become anything, that only a fool can become something.» 

Leitura para um verão inexistente.
Directriz para uma vida extirpada.

followed them?


Um exemplo histórico.

in the end

«In the end, to become a leader, he followed them». É nesta passagem de tom quase bíblico que Gourevitch, no Talk of the Town da New Yorker, resume a escolha de Romney por Ryan. A estratégia não é nova e ecoa ao popular dito se não os podes vencer, junta-te a eles. Mas Romney, ao baixar-se tanto ao Tea Party, ficou também nele a faltar algum chá.


9.8.12

agosto

Rotina. Dispersão. Desgaste.
O tríptico do meu fracasso.

7.8.12

a circle in the mist


Aprecio particularmente esta obra de Long. Um círculo na névoa, Escócia 1986. Um círculo  feito por pressão, por repetição, por um movimento elíptico quasi-eterno. A névoa — filtro de incerteza, desfocagem, indefinição no horizonte. Caminhar em círculos na névoa remonta ao aventureiro perdido e cansado, efígie narrativa de Jack London a Joseph Conrad. Caminhar em círculos na névoa: a minha adolescência; a minha idade adulta.

6.8.12

A sudden
gust
of no-
thing.

4.8.12

little is known besides failure

He was sent to the Cameroons and returned to France in 1917. 
Little is known of this trip. Except that it was unsuccessful.

4.7.12

the fourth

O fogo-de-artifício do Dia da Independência cobre de tons alaranjados o céu nocturno da metrópole. Ao longe, o efeito provoca a ilusão de uma cidade em chamas por entre os arranha-céus de downtown. Em simultâneo, helicópteros da polícia sobrevoam ruidosamente Greenpoint e Williamsburg numa tentativa de controlo dos pirotécnicos amadores e dos piromaníacos profissionais, que tentam deste lado do rio rivalizar com o espectáculo oficial. Os holofotes perscrutam os terraços em todas as direcções. Sem grande efeito. Foguetes proibidos estoiram ocasionalmente, desafiantes. Os helicópteros não desistem e continuam muito depois de o espectáculo terminar, evitando a todo o custo fogos acidentais. Mas a cidade já é há muito um inferno. Que a deixem continuar a arder, ninguém se parece importar.



28.6.12

The house is burning, /
the guilty inside / 
crouched with loath /
of them fucking selves.


19.6.12


Once upon a time a man arrived to an island.
The island was desert.
Not desert as the man, though.


1.5.12

the dude from greece


Dois estudantes adolescentes sentam-se ao meu lado à hora de almoço. Um deles agarra um dos livros do outro, olha para o nome do autor e pergunta-lhe por fim: "who's Plato?" O outro responde: Plato, that dude from Greece.



27.4.12

Os protestantes da ocupação de Wall Street voltaram à carga e montaram agora quartel-general na escadaria do George Washington Memorial onde se preparam para o primeiro de Maio. A polícia veio depois e balizou-os com um gradeamento de rua. Sentiram-se então muitos incomodados pois indignados já o eram os seis senhores que lá estavam com quatro cartazes e mais um rafeiro de lenço ao pescoço e cauda pintada de verde-alface. Os turistas, de traje apropriado para a prática do montanhismo, adoram a situação emergente, fotografam a medo e sorriem condescendentes para os niilistas de bolso, como sempre o têm feito desde que esta saga começou. No vórtice do triste espectáculo, o único que se safa é o cão. A ver se um dia destes lhe levo um osso.

21.4.12

a casa

Explicava-lhe que a essa casa onde se passaram essas coisas ficava ao lado de uma antiga loja de ferragens que depois se tornou numa venda de tecidos, rés-do-chão de um prédio destruído e outrora situado numa esquina que hoje em dia já não existe. E a casa, acabou por perguntar, ainda existe? Mas o seu interlocutor desaparecera entretanto.

da multidão

Ao longo dos seus textos Benjamin demonstra que a subliminar obsessão pela multidão  — talvez por esta ser um reflexo da transformação da civilização  não é unicamente sua. Cita Poe, Balzac, Stevenson, Hugo, Dickens, Engels, Shelley. Todos eles (e ela), muito antes dele, sentiram o tal turbilhão de uma força centrífuga que Baudrillard, muito depois dele, descreve. Contudo, as passagens transcritas pelo alemão são propositadamente contraditórias: uns encontraram na vertigem da multidão um elemento inspirador (Dickens); outros, algo aterrador (Shelley). Benjamin tenta com isto provar que as expectativas e experiências individuais foram factores decisivos para múltiplas definições do então «novo» fenómeno social e urbano. Também por isso  nasceram da multidão novos arquétipos tão contrastantes como complementares. Victor Hugo por exemplo era um cidadão-herói (héros-citoyen) pois a sua experiência com a multidão estava no interesse pelas massas que o idolatravam enquanto homem de sucesso. O «flanêur», Balzac ou Baudelaire por exemplo, aparece na antítese, como o anti-herói, personagem camuflada cuja aspiração não é mais do que o anonimato e a observação. Quanto a mim, a multidão não me interessa no sentido que faço parte dela, sem heroísmos ou niilismos, apenas como mais um peão na rotina diária de um percurso mais ou menos fixo. Observo-a distraidamente e sem qualquer interesse; de igual maneira que distraidamente e sem qualquer interesse a multidão me observa a mim.

17.4.12

origem

Em 'A une Passante', Baudelaire encanta-se por uma mulher que passa por si na rua mas num portentoso jamais reconhece a impossibilidade de um futuro reencontro. Benjamin revê nesta solução uma fórmula social da cidade moderna que é palco de uma flanerie activa de encontros & desencontros; e por isso lugar de desencantos, desilusão. O amor do poeta não foi assim à primeira vista, promissor na sua progressão a caminho de um objectivo, de uma conquista. Foi, ao contrario, à ultima vista, extático em si mesmo e pré-condenado, vítima de uma condição da nova velocidade dos tempos. Na leitura de Benjamin transparece uma percepção nítida do desapontamento que a modernidade trouxe no aniquilamento do indivíduo e dos seus prazeres. Essa sua desilusão leva-me para outro autor que também se deixou seduzir pelo lado perverso da multidão. Em 'America', Baudrillard dedica um capítulo (algures já transcrito por aqui) à análise da metrópole e aos seus fluxos, movimentos, velocidades. As considerações e receios de um encaixam nas desilusões e medos de outro. A cidade moderna, longe das Arcadas, como a máquina imparável e impessoal, colosso monstruoso perante a natureza humana. Entre os dois textos estão mais de cinquenta anos de diferença. Benjamin, por isso, será o pós-modernista original.

16.4.12

neo-post-modern sunday

De papo-para-o-ar no McCarren Park, reparo como os transeuntes dariam personagens perfeitas de a) um filme do Rohmer —elas; b) um livro do Easton Ellis —eles. A nostalgia da estética pós-moderna está de volta, como é sabido. Não tão sabido é que estava de volta tão em grande. 

13.4.12

Benjamin


Flânerie gauchiste sur l'Histoire.

Walter Benjamin, do epicentro à tangente, diagrama

Faço no meu caderno um pequeno diagrama sobre a metodologia ensaística de Benjamin. Desenho um ponto rodeado por um círculo   o seu tema central  onde de seguida o quadrante esquerdo desse mesmo círculo se torna no ponto comum tangencial a círculos cada vez maiores. Este afastamento gradual do ponto central mas de alguma forma mantendo-o dentro do círculo exemplifica a capacidade reflectiva de Benjamin: não obsessivamente dedicado a um assunto, apenas também muito interessado em tantos outros. 



12.4.12

the burning of Paris

Tomo nota da frase e imagino-a como a) um título de Wenders; b) uma letra de Cohen.
Um ou outro, mas de 1981.

11.4.12

Haussmann



O proto-desconstrutivista. 

10.4.12

l'obsession de la ligne droite

Do Barão Haussmann, a notória obsessão pela linha recta e pelo culto do eixo fez com que, no século XIX, a cidade de Paris se transformasse na figura urbanística apoteótica aspirada por Napoleão III. Para a implantação das grandes avenidas idealizadas por Haussman, tecidos da cidade pós-medieval foram destruídos numa série de expropriações mais ou menos (in)justificadas. Haussmann o político, consciente do efeito colateral do seu projecto moderno e megalómano, auto intitulava-se com cínica vaidade de artist démolisseur. Numa série de ensaios sobre Baudelaire e a sua contemporaneidade, Walter Benjamin relata num pequeno texto as motivações de Haussman para além das estético-urbanistas   ou aquilo que foi apelidado de «embelezamento estratégico»: o urbanismo faustoso como corolário do Second Empire mas também como prevenção de uma guerra civil. O alargamento das ruas para largas avenidas impediria a construção de barricadas revolucionárias da mesma forma que o percurso entre os subúrbios do proletariado e os quartéis militares seria mais rápido e directo. Mas a medida mostrou-se ineficaz e durante a Comuna de Paris, no rescaldo da derrota francesa na Guerra Franco-Prussiana, as barricadas tornaram-se mais fortes e seguras do que alguma vez tinham sido. Algo dramático e vagamente vingativo, Benjamin conclui: «the burning of Paris was the worthy conclusion of Haussmann's work of destruction». 

9.4.12

identity (i)

Architect, Flanêur, around.
Anywhere, nowhere;
elsewhere.

6.4.12

na mira


Ou vícios de coleccionador.

4.4.12

e, assim,

uma menina fez de mim um Homem.

3.4.12

outros exemplos


12.3.12

an evening in central park

A noite acabara de cair quando nos sentámos na Alameda dos Poetas. Estava tranquila, a alameda, e ela também. Contemplativa, com o olhar vago pelos topos dos arranha-céus que se deixavam ver acima da copa das árvores. Descansava a cabeça no meu ombro e conversávamos sobre coisas banais. Foi nesse momento, meio desajeitado, que tirei a caixa do bolso e a coloquei à sua frente. O tempo parou e os seus olhos brilharam de curiosidade. Abriu nervosa para a minha pergunta, clássico dos clássicos de todos os filmes a preto-e-branco. E dessa forma, naquele fim de tarde no Central Park, ela disse "sim". 

29.2.12

zuccotti plaza

De novo, o povo.

13.2.12


August Sanders, 'Country Girls', 1925

11.2.12

lampedusa dictum

Estava naquele lugar da solidão que só é possível quando se está acompanhado. Estava naquele lugar de desprezo e descrédito de quem se quer o melhor. Estava naquele lugar onde tudo tinha de acabar. Como escreveu um e disse o outro, às vezes é preciso que tudo mude para que tudo fique na mesma. Estava nesse lugar e saí. Apenas para chegar depois ao sítio onde sempre tinha estado.

7.2.12

gigantes

A parada de Vitória dos Giants é um ponto alto do populismo imagético norte-americano: chuva de confetti pelos arranha-céus de downtown e o histerismo das massas vestidas de azul. César entra vitorioso no regresso à  civilização — na forma de quarenta e tal jogadores profissionais e de um treinador com mau-feitio.


6.2.12


Há alguns homens que pagam para ter mulheres.
Há algumas mulheres que têm homens que pagam para se verem livres delas.

5.2.12

os erros dos outros

Preocupei-me sempre tanto com os erros de casting dos outros e afinal,
/ de todos, /
o maior erro de casting foi o meu.

30.1.12

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21.1.12

sunday, snow day

A neve de manhã ao abrir a janela e a notícia de um suícidio no L-Train.
Inverno, por fim, de volta a casa.


20.1.12

mexico city diaries (2)

É durante a aterragem que percebemos a verdadeira dimensão da metrópole. Vinte e um milhões de habitantes espalhados por um planalto perdido entre a encosta de um vulcão adormecido e um horizonte esmagado pelo nevoeiro de uma poluição crescente. Em terra, à imagem aérea do caos urbano juntam-se os milhares de detalhes de cada esquina, quase sempre vontade mimética das anteriores e das que lhe seguirão. Uma seriação em si, código genético de uma banalidade; dado comum multiplicado até ao infinito cujo resultado é sempre igual a si mesmo. Os logótipos, as cores das fachadas, os carros, os sons, as pessoas. Tudo se repete, das casas de venda aos stands de tacos. / Cenários. / Mas são esses mesmos detalhes que depois de uma e outra vez / embora semelhantes / se tornam particulares, reconhecidos na sua unicidade que paradoxalmente é plural, de todos os que formam as partes. Pontos de referência camuflados, jogos subtis entre o viajante e a sua estranha envolvente de múltiplas dimensões, esquema de espelhos e planos. Tudo parece ser o que nem por isso é. Até que chegamos ao local do nosso destino, onde tudo é o que nem por isso parece ser.

mexico city diaries

Venho aqui pela décima vez nos últimos nove meses; ou talvez seja a nona vez nos últimos dez meses. 
Vezes por meses; ou meses por vezes. Dá igual. Uma ponte aérea entre o compromisso e o esquecimento.

16.1.12

twitter

To follow specially myself.

14.1.12

sylvia rowing, circa 1960


Row, row, row your boat,
Gently down the stream.
Merrily, merrily, merrily, merrily,
Life is but a dream.

Popular American children's song, 1852.
E assim entrámos naquilo que Borges descreve como uma dessas amizades inglesas, que começam por excluir a confidência e que muito rapidamente omitem o diálogo.


living in an anglophone world

Para quem tem a maioria da bibliografia do senhor no original em espanhol, ler Borges em inglês quase que nem é desculpável. Mas tal como a ocasião faz o ladrão, da mesma maneira a oportunidade seduz o curioso. E a pequena edição, com um par de «novas histórias entre muitos dos seus clássicos», seduziu-me. Mesmo em inglês; ou uma questão de força das circunstâncias.

11.1.12

«He and my father had entered into one of those close (the adjective is excessive) English friendships that begin by excluding confidences and very soon dispense with dialogue.»
Jorge Luis Borges, 'Tlön, Uqbar, Orbis Tertius'.
«Like all men in Babylon, I have been proconsul; like all, a slave.» 
Jorge Luis Borges, 'The Lottery in Babylon'.

10.1.12

new year's eve

Foi pelas onze da noite, quando ainda estava na lavandaria à espera que o secador de roupa terminasse, que vi pelos néones da montra passar o carro lá fora. Uma fracção de segundos. Um vulto de um homem ao volante. Ao seu lado, na fraca luz do habitáculo, uma mulher pintava os lábios com a ajuda do espelho do pára-sol. Tinha um ar concentrado e distante. Uma acção banal, repetida no quotidiano. Um fotograma de uma cena doméstica, urbana, comum que antecipa a «festa», o «evento social» e que em mim nada mais ilustrou do que um possível momento antes da desgraça; de um acidente, de uma desfiguração. Onde os outros vêem diversão unicamente antevejo tragédia. Uma tragédia em si, isto, também.

9.1.12

os irascíveis, brindemos a isso


«In May 1950, a group of New York painters wrote a letter to the Metropolitan Museum of Art protesting its anti-abstract bias in the selection of painters for the exhibit American Painting Today 1950. The letter appeared in the NY Times and the Herald Tribune. A photo of the group taken Nov. 24, 1950 appeared in Life's Jan. 15, 1951 issue, captioned Irascible Group of Advanced Artists Led Fight Against Show».

Pictured from left rear: Willem De Kooning, Adolph Gottlieb, Ad Reinhardt, Hedda Sterne; next row: Richard Pousette-Dart, William Baziotes, Jimmy Ernst, Jackson Pollock, James Brooks, Clyfford Still, Robert Motherwell, Bradley Walker Tomlin; foreground: Theodoros Stamos, Barnett Newman and Mark Rothko. Missing from photo: Weldon Kees, Fritz Bultman and Hans Hofmann. Photographed by Nina Leen for Time/Life, 1951.

2.1.12

the billiard kind (2)


«Género», sim, mas de cachimbo.
Porque o jogo oficial deste senhor era xadrez.

the billiard kind

Troquei os cigarros pelo cachimbo. Por uma questão de ritual, sobretudo. O trabalho em Downtown é exigente. As relações profissionais são complexas —talvez mais do que as tarefas em si. O cachimbo proporciona-me um momento de relaxamento, à hora de almoço em frente ao rio, ou à noite ao chegar a casa. Colocar o tabaco, pressioná-lo para a firmeza certa, acendê-lo lentamente em inalações compassadas. Deixar depois o sabor rolar na boca e expelir o fumo branco, espesso. Dos vários tipos de cachimbos prefiro o Billiard, clássico e perfeito. E dentro dos rituais do cachimbo há também os de limpeza: da raspagem da câmara do fornilho ao interior da haste com um escovilhão. Tudo parte de um todo, do tal ritual. Coisas que vêm com os anos, parece-me.


31.12.11

Sylvia writing, circa 1960


Tinha algo no seu despojamento e desapontamento que me lembrava Sylvia Plath. Depois de ler a cópia de 'The Bell Jar' que lhe ofereci disse-me que se tinha revisto demasiadamente na personagem  e mesmo com Plath visto que «até a sua máquina de escrever é igual». Não foi novidade para mim, já o sabia de antemão: parecenças & máquinas de escrever. Da mesma forma que lhe conhecia o lado subtilmente depressivo, flagrante. Agora, jogo na mesa e de cartas dadas, talvez tudo acabe bem. Ao contrário de Plath que, enfim, foi o que se viu.

a year in review (2)

Transformámo-nos em dois veteranos da nossa guerra pessoal. Entre derrotas e vitórias de guerrilha emocional nenhum ganhou muito. Ambos vítimas e carrascos, agora elementos em reconstrução, sobreviventes no espólio de uma história de amor-ódio.

30.12.11

a year in review

De todos, quem me ofendeu foi quem estava mais perto. Não os meus inimigos; se é que tenho algum por aí. Ao passo que ofensas de inimigos podem nem sequer chegar a ofender, quando o acto é perpetrado por alguém que nos é íntimo os estragos são mais ou menos consideráveis. Aos inimigos, como se sabe, não se dá o flanco. O que aprendi este ano é que àqueles que nos são tão próximos que quase se confundem connosco também não.

29.12.11

surveillance, one day ago

Saio de casa pelas seis e trinta em ponto. Ainda não é dia. Inicio a corrida com cuidado, foram algumas semanas de descanso, preguiça e desculpas esfarrapadas para mim mesmo. Passo por baixo da plataforma elevatória do Brooklyn-Queens Expressway. Por cima vejo os helicópteros plantados como câmaras de vigilância fixas para levar a todas as casas o trânsito before the world wakes up. O barulho monótono e impositivo remonta a ficção, a um ultra controlo de um regime totalitarista que observa os seus cidadãos, futuro e passado; talvez não tão ficção, concluo. Chego ao tartan do McCarren Park já cansado e tento não ouvir as minhas próprias lamúrias. Alguns corredores estão no seu ritmo, percebo-lhes as sombras entre as luzes dos holofotes que iluminam a pista. Não consigo acompanhar nenhum deles. Estou enferrujado, lento. Luto, corro. Devagar. Aos poucos. Quase parado.

Helena Almeida, Ouve-me, 1979.

28.12.11

that kind of

Diana pergunta a Frank se ele a ama. Ele responde-lhe que é uma espécie de amor. Responde-lhe que com uma mulher como ela como pode um homem saber? A resposta é soberba. Frank não mente, é sincero. E consegue igualmente resumir as angústias que um certo tipo de mulher provoca num homem. Diana é filha de um milionário, bela, mimada, caprichosa, insegura e manipuladora. Frank é um homem vivido, ex-piloto de corridas, sem grandes ou nenhumas pretensões para além de criar o seu próprio negócio para o qual poupa trabalhando noite dentro como condutor. Frank e Diana conhecem-se por acidente numa noite em que Frank, de plantão, é chamado na sua ambulância à mansão de Diana. O que acontece a seguir já era um clássico do cinema mesmo antes de Preminger o ter filmado aqui também. Diana fascina-se com a ideia de independência e os ares de masculinidade — e seduz Frank com truques de femme-fatale sofisticada que as mulheres do mundo dele não poderiam nunca igualar. No desenrolar dos eventos Frank apercebe-se do erro e tenta a fuga. Mas o que encontra é antes uma acusação, um julgamento, um casamento forçado. Depois de tudo ultrapassado Frank não desiste de Diana; até ao momento em que tem de o fazer para não desistir dele próprio. Na impossibilidade de ficarem juntos, Diana engana Frank e provoca aquilo que é uma das mais espectaculares quedas do cinema a preto e branco. Morrem os dois. De todo o pó e destroços ficou apenas a memória de Frank. Para que outros homens aprendessem alguma coisa com isso.

27.12.11

year after year

Embora «novo», envelheço. Dou conta dos anos a passar. Não só em mim. Nos outros, o meu espelho, também. Percebo que envelheço mas que sou o mesmo. Por vezes sem o ser mais naquilo em que o era. Ou quase sempre por ser gradualmente um pouco menos daquilo em que o fui. Mas gosto de pensar que, diferente ou não, sou mais do que alguma vez poderia sequer pensar ter vindo a ser. A ilusão, velha companheira de armas, lado a lado com a derrota de uma vida. Torne-me assim noutro homem, dia após dia. Melhor, gostaria. Mais velho, certamente.

22.12.11

blinky palermo


To the People of New York City.

do ensino do Desenho, da Forma e da Cor

A leitura da História da Bauhaus foi útil em diversos aspectos. De todos, o mais importante talvez tenha sido a confirmação de que tudo o que aprendi sobre Desenho, Forma e Cor desde o início do curso de Introdução às Artes Plásticas, Design e Arquitectura (do nono ao décimo segundo ano) até à conclusão da universidade teve uma relação directa com alguns dos métodos pedagógicos criados pela Bauhaus. O pior, foi que nesses dez anos de aprendizagem nunca ninguém me tenha dito isso.

17.12.11

the world before you wake up

O alinhamento dos quatro pivôs no poster sugere profissionalismo a mesma posição frontal que assumem perante a câmara durante a emissão mas as expressões faciais remetem para uma intimidade com o possível espectador que vai para além da seriedade do noticiário e deixa antever «diversão». No anúncio prometem acompanhar os nossos despertares com o trânsito, as notícias, as actualidades, das 4.30 às 7.00am, everyday, utilizando o lema «the world before you wake up». A fotografia dos pivôs é misturada com outros sinais comuns aos passageiros do metro: a silhueta da cidade por trás, o logótipo da cadeia televisiva local, as letras em fontes dinâmicas  dinâmicas como os elementos da equipa que nos traz o mundo antes de acordarmos. A mistura racial dos pivôs aponta para uma diversidade nos conteúdos noticiosos: o mundo de todos e não o de apenas alguns. Um caucasiano, uma latina, uma asiática e um afro-americano  this is America , com nomes próprios e sem apelidos a intimidade —, todos de sorrisos rasgados a antevisão da diversão. Detenho-me particularmente nesta estereotipia do pivô: os mesmo fatos, penteados, maquilhagens, branqueamentos de dentes. A validade da sua heterogeneidade racial só interessa assim num primeiro plano e serve apenas para a coesão de um objectivo final. À parte disso são figuras planas e iguais. Ocas, sem expressão ou tridimensionalidade. 

12.12.11

moholy-nagy


O homem que foi o white-collar de blue-collar.

praise the machine (2)

Figura estratégica da mudança de rumo da Bauhaus foi o multifacetado húngaro Lazslo Moholy-Nagy. Amplamente influenciado pelos construtivistas, Moholy-Nagy defendia no seu tratado 'Constructivism and the Proletariat' (1922) a realidade do século como a technologia: a invenção, construção e manutenção de máquinas  «to be a user of machines is to be of the spirit of this century». Sendo a Fotografia a mais mecanizada e tecnológica das artes à época compreende-se que, para o húngaro, quem nada soubesse de Fotografia não passaria de um iliterado visual. Durante o trabalho vestia-se como um operário de fato-de-macaco e deixou de lado as suas ambições artísticas pessoais pelo interesse colectivo, visto que lhe parecia que «a indulgência pessoal em criar arte em nada contribuiu para a felicidade das massas». O seu romance com a Máquina e o Socialismo prosseguiu e Moholy-Nagy provou ser o homem que Gropius idealizou para a Bauhaus desde o início: a mecanização como o meio de extrapolar a produção do homem a favor do colectivo. O que fez com que o seu antecessor Joannes Itten, intelectual dado a espiritualismos e impulsionador da actividade artística pessoal, se tornasse no vanguardista mais obsoleto do século XX.

11.12.11

praise the machine


«Everyone is equal before the machine. I can use it, so can you. It can crush me; the same can happen to you. There is no tradition in technology, no class-consciousness. Everyone can be the machine's master or its slave.»

Lazslo Moholy-Nagy, 'Constructivism and the Proletariat', 1922.

10.12.11

the battle of love

A vida amorosa de Alma Mahler deu corpo a inúmeros comentários durante mais de meio século. O pintor austríaco Oskar Kokoschka experimentou com ela todos os estádios da «paixão». Começou com amor à primeira vista numa soirée cultural vienense e terminou numa decapitação simbólica a evocar grotescos rituais pagãos. Nesse espaço de tempo, cerca de três anos e nos quais lhe escreveria mais de quatrocentas cartas de amor, Kokoschka desenhou e pintou Alma da mesma maneira obsessiva com que a possuiu. O traço expressionista das suas telas deixa antever a intensidade frenética passada no leito dos amantes. Em 'Noiva do Vento' (1913) o pintor enfatiza a tormenta que é a vida fora do círculo de Alma, simultaneamente musa e único reduto possível de quietude. Sobre ele, Alma disse que o que passaram juntos foi uma batalha de amor, que nunca antes disso tinha provado tanto Inferno como tanto Paraíso. Com o tempo, o lado ciumento de Kokoschka começou a pesar mais do que o seu lado libidinoso e Alma cansou-se. Forçou o afastamento provocando Kokoschka pela sua cobardia, por ainda não se ter voluntariado para a guerra que assolava a Europa. Igualmente aconselhado pelo seu amigo Adolf Loos, Kokoschka partiu e foi gravemente ferido, apenas para descobrir no regresso a relação de Alma com Gropius. No desespero pela perda irreversível, Kokoschka encomendou uma boneca em tamanho real que possuísse as mesmas características físicas de Alma. Quando finalmente chegou mostrou-se deficiente para o seu maior propósito original. Sem utilidade para o consolo de alcova, Kokoschka organizou uma festa que culminou com a decapitação da figura regada com vinho tinto. A catarse do estado de alma (e Alma) e a cauterização de uma cicatriz que ficaria para toda a vida. Comparado com Kokoschka, o lunático da 'Sonata a Kreutzer' do Tolstoy parece um menino.

4.12.11

weimar (3)























Alma Schindler.
Viúva de Mahler, mulher de Gropius, amante de Werfel.
Tudo ao mesmo tempo.

weimar (2)

Um dos pioneiros Mestres da Forma da Bauhaus foi o pintor suíço Johannes Itten, um homem dedicado à teoria da cor e às práticas do esoterismo. Um vanguardista dentro dos vanguardistas. Adepto do movimento religioso Mazdaznan, uma espécie de pré-new-age do virar do século XIX, usava cabeça-rapada e túnicas desenhadas por si. Dentro dos seus métodos de ensino estava a relaxação corporal, exercício no qual os alunos deveriam sentir com os seus corpos gravidades de diferentes formas geométricas. Conseguiu converter alguns estudantes e ainda transformar os hábitos alimentares da cantina para um vegetarianismo temperado fazendo com que a Bauhaus se assemelhasse mais a um retiro espiritual do que outra coisa. Itten foi forçado a partir ao fim do seu segundo ano. A comunhão do corpo com o espírito e a expressão introspectiva individual artística não estava na agenda de Gropius para a Bauhaus. Da mesma maneira que não estava para o porvir do século XX.

weimar (1)

Os primeiros anos da Bauhaus em Weimar foram para Walter Gropius uma série de dores de cabeça. Faltas de meios e de fundos impossibilitavam a perfeita execução dos objectivos do seu manifesto no qual Arquitectos e Artistas deveriam voltar a uma condição de Artesãos, de homens de construção. Para o corpo docente, Gropius juntou mestres de diferentes áreas artesanais como a Carpintaria, a Tapeçaria ou a Olaria a artistas intelectuais, apelidados de Mestres da Forma, para em conjunto ensinarem técnica e estética. Gropius percebeu o essencial que «antes da arte estava a techné»  mas a precaridade económica do projecto provou o contrário. Sem fundos para os apoios técnicos nos workshops, a Teoria venceu a prática. 

3.12.11

repent yourselves, 2010



Em 'Atlas', iniciado em 1964 e em contínuo desenvolvimento, Gerhard Richter começou uma colecção a partir de fotografias retiradas de álbuns de família, de recortes de publicações e de postais. Poderíamos vê-la como uma interpretação da Biblioteca de Babel, de Borges, mas para a Imagem ao invés da grafia: um Arquivo Universal. Nesse arquivo encontramos imagens amadoras e familiares, jornalísticas e profissionais, de paz, de guerra, de autor, retratos, desenhos, textos e anotações manuscritas. Erotismo, pornografia, violência, demência, ingenuidade, apatia, infância, êxtase, quase tudo está representado neste conjunto de cerca de 5000 imagens e ele revela-se em parte como uma testemunha histórica — dos costumes, das ideias e das emoções — dos séculos XIX e XX.

Numa tentativa de marcar uma linha cronológica e descritiva (através de imagens) que também operasse como uma «testemunha histórica», procurei pelos alfarrabistas e lojas de velharias norte-americanos fotografias de álbuns familiares que correspondessem a um período muito específico dos EUA: da entronização do American Dream à queda deste; ou seja, inícios de 1950 a finais de 1970. A selecção de imagens unicamente de carácter amador deriva da particularidade de encontrar nelas uma estética muito reveladora do período. Estas fotografias, conhecidas como kodak snapshots, resultam descomprometidas e casuais e surgem assim como as melhores testemunhas de uma identidade suburbana e colectiva. Nascem, paralelamente, de uma desculpabilização do sujeito perante o objecto.

Ao catalogar uma época através de imagens amadoras, quis igualmente acrescentar-lhes elementos que, por um lado, enfatizassem as raízes de uma identidade colectiva e que, por outro, questionassem a evolução dessa mesma «identidade». A incorporação de passagens bíblicas que focam o arrependimento e a entrega, (retiradas da versão Protestante da Bíblia), aos elementos fotográficos vem precisamente nesse sentido. É uma referência ao legado Puritano norte-americano que se regula por um ascetismo visual e emocional dentro da sua lógica de contenção física e espiritual: todos somos pecadores devido ao Pecado Original, nada mais nos resta do que o arrependimento.

«Repent Yourselves» explora assim o confronto dessa liberdade e individualidade do Sonho Americano —a celebração, o ócio, o lazer, o hiper-consumo, a padronização do life-style— com os dogmas de conduta puritanos da expiação da culpa pelo arrependimento enraizados no subconsciente colectivo de uma sociedade e cultura. Se as fotografias familiares e desinibidas sugerem a desculpabilização, as referências biblícas reforçam o seu oposto.


Imagens: 
'Repent Yourselves', 2010, Pedro Duarte Bento
12 original Kodak snapshots with biblical inscriptions wooden framed, ed. 1/1

24.11.11

wall street (3)

Nos dois meses nos quais ocuparam gradualmente a praça privada de uso público o movimento da putativa Ocupação de Wall Street não passou da ocupação de Zuccotti Park, o núcleo de indignados inicial, maioritariamente anarquista, foi tendo como parceiros outros indignados vindos de múltiplas facções da sociedade: desempregados, estudantes, activistas, sindicalistas e veteranos. A todos estes juntaram-se depois os bêbados profissionais, os indigentes, os sem-abrigo, os fanáticos religiosos, muitos jornalistas e, por último e em grande, os turistas. Certamente os mais indignados de todos.




8.11.11

until the end of the world



Entre a promessa da velocidade dos deuses com o triunfo da máquina no Futurismo e a desilusão, pessimismo e negação no Pós-modernismo está quase um século de avanços mutilados pelo trauma de duas guerras globais e nas quais essa mesma máquina aniquilou para lá do imaginável. E assim estranhamente se compreende que entre o Futurismo e o Pós-modernismo o melhor de tudo só poderia mesmo ser o futurismo pelo pós-modernismo.

Until the End of the World, Wim Wenders, 1991.
Para ti. For you. Pour toi.

15.10.11

drawing



Voltemos a Palladio e deixemos por momentos os corredores, essa grotesca e engenhosa invenção da pequena burguesia e sub-produto da Revolução Industrial.

12.10.11

wall street (2)

Sozinho, sentado na praça fria e cinzenta, com a salada na mão, sou à hora de almoço um ser tão exótico para um japonês de máquina fotográfica em punho como um nativo do Mato Gross o era para o Lévy-Strauss. Represento uma coisa que talvez nem seja, mas aparentemente represento-a bem.

wall street (1)

Por estes dias as ruas estão parcialmente vedadas por grades da polícia que impedem aos manifestantes a aproximação à NY Stock Exchange e ao Federal Memorial. Há mais de três semanas que o barulho continua no local onde decidiram fazer o seu acampamento, o seu campo de acção e de guerrilha. As palavras de ordem proferidas pelo megafone, o batuque dos tambores, os gritos compassados tornaram-se na melodia que durante três quarteirões embarca as minhas manhãs a caminho do estúdio. O grupo tem crescido lentamente. Noto-os agora mais organizados, mais decididos; mas igualmente sujos, igualmente tribais e desajustados — numa imagem social que os coloca mais perto de ocupantes anarquistas do que a classe-média que tentam proteger. Um homem mais velho wiches wishes me a good day, sir todos os dias quando passo em frente à turba. Respondo-lhe apenas com um aceno de cabeça, mais educado do que simpático pois reconheço-lhe a ironia, o olhar provocador. De fato e trench-coat encarno o que ele repudia e o seu cartaz promete acabar. Julgamo-nos os dois pelas aparências. Estaremos porventura os dois enganados.

29.9.11

cathedra


Sobre Barnett Newman também nunca discutimos.

voyage au tour de ma chambre, au tour de ma vie

Tomo notas atrás de notas. Encho os cadernos com apontamentos, rascunhos. As ideias materializam-se num plano abstracto. Pela grafia, à imagem de Borges, e não na sua forma mais pura: o ponto e a linha. Mas são precisamente pontos e linhas a partida dessas mesmas ideias; ideias que são afinal traduzidas em palavras. Ideias explicadas, dissecadas, identificadas. Viajo muito, agora, entre aqui e ali, e também pelas ideias. Ideias de projectos, projectos para ideias. Os esquissos acumulam-se em pequenos papeis amarelos. Esquissos de ideias, ideias de formas, ideias de escritos; escritos de ideias, ideias de projectos. Entre projectos e ideias, a minha vida. Aos poucos, depressa, devagar.

10.9.11

ornament is crime; propaganda is not


Ornamento e Crime. Ornamento é crime. Propaganda não.
O primitivo vício moderno e pós-Boulléano pela estética romana combinado com a corrente loosiana levou Speer a um nível diferente de interpretação das geometrias clássicas. Mas a grandiosidade ideológica foi enfatizada pela escala e a sua respectiva falta de referência e não por um exagero visual de múltiplos componentes. Um símbolo, um eixo, uma mensagem. Ornamento é crime. Propaganda não.

9.9.11

Love affair.
Love unfair

28.8.11

after the hurricane

twenty four hours tracking irene

Sábado, 9.22: O furacão é amplamente comentado; estranhos trocam graçolas, confidências e receios. Os loucos anunciam o fim; numa longa linhagem histórica onde todos os outros loucos o têm anunciado antes deles. 

Sábado 12.34: Aquilo a que assisto na cidade é algo novo. As prateleiras nos supermercados esvaziam à mesma velocidade que o furacão se aproxima. Água, pão, velas, lanternas, pilhas são os primeiros itens a esgotar por todo o lado. Cria-se o ultra-abrigo — no círculo privado do nosso próprio medo. 

Sábado 13.43: Seguimos o protocolo; e estando na zona de evacuação B preparamos os detalhes para o caso do aviso chegar. Virilio prevê o cenário no seu 'Futurism of the Instant': todos seremos refugiados no Futuro. Sempre me pareceu que já o seria no Presente.

Sábado 15.39: Percorro de bicicleta as duas últimas horas antes do momento crítico para recolher. A liberdade antes da catástrofe.

Sábado 17.25: Coloco tardiamente umas placas de madeira a proteger o vidro das minhas janelas. A chuva é agora intensa e o vento forte. O meu castigo pela Preguiça.

Sábado 19.33: As notícias relatam os estragos iniciais ao longo da Carolina do Norte, a sul. O impacto com a cidade prevê-se para as próximas horas. Espero noite dentro. Espero. Como naquela angústia sem fim no 'Deserto dos Tártaros' de Buzzati.

Domingo 2.12: Há vento e muita chuva. Nada mais do que isso. Nem ninguém.

Domingo 9.22: Acordo e pelos estores reconheço a normalidade lá fora. Vou sair. Por aqui o furacão chegou ao fim.



26.8.11

why do they name all hurricanes after women?

O tremor de terra na terça-feira. O furacão no Domingo.
Como eu previra, depois da tua chegada acabar-se-ia o meu sossego.

14.8.11

Chove como não há memória. Doze horas a fio sem parar. O barulho dos trovões é apenas interrompido pelas ocasionais sirenes. A cidade que nunca dorme silenciou-se, por fim. Da minha janela não vejo passar quem quer que seja e eu próprio tão-pouco me aventuro pela rua alagada. Observo-a apenas, cá de dentro, sozinho, sem calmas ou pressas; sem motivos ou objectivos.

before sunday brunch

Sou agora um homem preso a uma responsabilidade de uma única circunstância profissional que determina múltiplas circunstâncias da vida. Uma máquina, um autómato, um mecanismo perfeito que não falha perante o desafio. Mas cujas emoções pessoais se esbateram, cujas atitudes sentimentais foram obliteradas pela realização de um propósito. Desapareci da minha vida tal; como por último a minha vida desapareceu de mim.

2.8.11

the summer lesson

26.7.11

your car is ready

Deixo donwtown por três dias para uma viagem de trabalho à Cidade do México. Não voltava aqui desde 2005, ano em que atravessei o país durante um mês de mochila às costas. Agora as coisas são diferentes. Venho como «representante», de barba feita, fato-escuro, sapatos ingleses impecavelmente engraxados. «Gringo», chamaram-me eles à chegada. Mas rapidamente viram que estavam bem enganados.

22.7.11

the endless summer (2)

A temperatura que hoje se faz sentir combinada com os altos níveis de humidade e poluição torna este dia no mais sufocante do ano. Há no ar um filtro que transforma os contornos das silhuetas em manchas indefinidas, esbatidas. Pelos passeios, ao contrário do habitual turbilhão, as pessoas movem-se devagar. Os passos são lentos e ofegantes, em câmara-lenta. Como animais ao longe na savana. A logística da cidade também sofre as consequências do calor aterrador: linhas de metro paradas, aparelhos de ar condicionado avariados, máquinas de gelo estoiradas. Tudo derrete e é na subjugação do apparatus tecnológico humano que a cidade revela exactamente o que ela é. Um Inferno.

Refugio-me num cinema de esquina.
Porventura o Purgatório.

the endless summer

Pedalo noite dentro contra / o calor. / Pedalo noite dentro contra / a ausência / e a distância. / Contra o afastamento; / contra o pensamento. / Contra a memória. / Pedalo, / pedalo / por mim e por ti. 

uma bicicleta é como um cão

Faz companhia.

Tornei-me aos poucos num improvável coleccionador de bicicletas. A primeira porque é para ti, depois a segunda porque é para mim e agora a terceira apenas porque sim. Gosto de pasteleiras —ou cruisers, como lhes chamam por aqui— parecidas com as do Jacques Tati. 

10.7.11

le bonheur imprévu (3)

Comprei uma bicicleta. É clássica, confortável, estilo cruiser, dos anos 1970, preta e cromada, com selim de cabedal castanho, cesto, campainha. Percorri ontem com ela as ruas da cidade. Devagar, com calma, de passeio. Da actual casa em Bedford à anterior de Tompkins Square Park são cerca de trinta minutos, pela Williamsburg Bridge, no meio de toda uma multidão de outros ciclistas e peões domingueiros. Depois daí à West Village não chega a dez minutos mais. A ilha é pequena, transversalmente, e a minha parte da ilha ainda o é mais. Comprei uma bicicleta. É clássica e modelo de senhora. Para ti. Está à tua espera para quando chegares.

le bonheur imprévu (2)

A felicidade plena no universo das preocupações interiores rohmeriano nem sempre acontece. E quando acontece fá-lo de uma forma imprevisível e fugaz, subtil e simbólica — no joelho de Claire, no olhar de Pauline ou no efeito solar de um raio verde testemunhado por Delphine. Gostar de Rohmer para além da sua maturidade estética implica uma outra maturidade. Uma conseguida pelo peso amargo da derrota pessoal, da descoberta da impossibilidade, do fim da inocência. A frágil satisfação, o breve contentamento, o êxtase desmedido na sua proporção provam que Rohmer é território dos vencidos. Talvez por isso um dos meus favoritos.

6.7.11

le bonheur imprévu



23.6.11

outras coisas

Retomo o hábito matinal do jogging no McCarren Park e pelo caminho atravesso o despertar da vizinhança que um dia foi um dos redutos hopperianos da cidade. Por Berry Street reparo que os outrora armazéns e pequenas casas familiares dão agora lugar a novos condos e lotfs desvirtuados do seu conceito original. As fachadas de madeira e tijolo são substituídas por outras de alucobond e alumínio, os pequenos comércios e cafés dos rés-do-chão por ginásios de condomínio com fachadas de vidro; casas de três pisos por edifícios de seis, de nove, de doze. Tal situação, para além de revelar o habitual e inevitável progresso, demonstra duas outras particularidades: a idealização de um novo território pela agressividade e pressão do Real-Estate —destinado a yuppies e novos-ricos— e um narcisismo autoral que nele encaixa sem qualquer ideologia e/ou identidade estéticas. Por aqui nunca se ouviu falar em regionalismo crítico. Como tão-pouco se ouviu falar de tantas outras coisas.

10.6.11

landing

Antes de aterrar o comandante anunciava os noventa e oito graus Fahrenheit. Em terra sentia-se cada um deles multiplicado por um índice de humidade na casa dos noventa por cento. Depois de atravessar o Hudson e chegar à cidade o céu finalmente abriu deixando cair uma trovoada de Verão que transformaria a ilha numa poça imprópria para a altura do ano. Costuma-se dizer que boda molhada é abençoada. Espero que das «chegadas» se diga o mesmo.

8.6.11


Não penses que ficas no cais. / Na verdade / sei / vens já comigo, / lado a lado / sem oceanos de permeio / nem noites de lágrimas / de medos idos.

sena e borges

Numa mala onde o excesso de peso já há muito passou o excesso de peso, há apenas lugar para o melhor. Um pouco de casa com um, um pouco de fantasia com outro. Algo que é preciso, in the wild land of hyper-reality.

6.6.11

da abstenção

Abstiveste-te de tudo.
No Domingo de quem governaria, na segunda-feira de nós.

41,1%

Quarenta e um vírgula um por cento de taxa de abstenção significa acima de tudo que quarenta e um vírgula um por cento da população eleitoral portuguesa não se importaria de viver em regime autocrático e/ou totalitário. A quarenta e um vírgula um por cento, a democracia só dá trabalho.

5.6.11

a matilha

Consigo, mesmo nas vésperas do meu regresso definitivo aos EUA, vir votar e cumprir assim o meu «direito e dever de cidadão português num estado democrático». Voto na freguesia do Coração de Jesus, em Lisboa, e por coincidência o ainda primeiro-ministro em gestão —que também é eleitor nesta freguesia—veio votar ao mesmo tempo que eu. Escusado será dizer que o circo mediático à volta do stand está montado: dezenas de jornalistas, cameramen, fotojornalistas e alguns curiosos esperam em matilha a chegada do político e o momento do seu voto. Esgueiro-me entre eles, entro e uma vez no interior coloco-me discretamente à margem do caos e longe do alcance das câmaras, preferindo votar apenas depois do espectáculo passar. E é nesta espera que tenho a oportunidade de ver a matilha em acção. Os jornalistas comportam-se de uma maneira deplorável, atropelando tudo e todos à sua frente (colegas mas sobretudo eleitores) para o melhor ângulo, a melhor imagem, o melhor comentário. Eu acredito que cada um deva fazer o seu trabalho o mais profissionalmente possível, mas ver o comportamento de merda destes adultos é francamente lamentável. À saída, vendo o batalhão de câmaras apontadas à porta, digo-lhes na cara o que acho: uns animais, umas bestas-quadradas. Uma pivot presente concorda comigo, os restantes nem por isso.

27.5.11

our first breuer chairs together



«Marcel Breuer's revolutionary 1928 Cesca chair marries
user-friendly caning and wood with the industrial-age
aesthetic of cantilevered tubular steel».

Compramos em Lisboa as nossas primeiras Cescas side-chairs do Breuer em conjunto (tu já tinhas uma) nos dias que antecedem o meu regresso definitivo a Nova Iorque. Elas não são assim apenas «o nosso primeiro legado comum». São também uma subtil prova de continuidade e desejo: desejo de continuidade e continuidade de desejo. Eu vou e logo a seguir irás tu e talvez um dia qualquer as cadeiras por lá se juntem a nós. Mas isso não é verdadeiramente importante. Mais do que as Cescas são, é o que elas representam. Um futuro. Eu e tu, in our gang of two.

before the sun rises

No jogging, e em muitos outros desportos, o corpo é submetido a uma prova de resistência tal como a mente o é a uma prova de exigência: mais rápido, mais força, mais um sprint, mais uma volta; mais, mais, mais. Este conjunto de ordens mentais, depois de concluídas, produzem uma satisfação atlética que faz com que o dia, de alguma forma, comece mais completo pois a prática do desporto é fundamental para atingir um estado de espírito elevado. Mas tal também provoca um desgaste físico no nosso lado primitivo: corre-se para a exaustão do animal que há em nós. E com ele de rastos, podemos ser um aparentemente tranquilo peão na cidade ordenada, contemporânea, hipócrita e mesquinha.

18.5.11



«We will always be able to make films. When I saw 'Voyage in Italy', I knew you could shoot a two-hour film with a couple in an automobile. I've never done that, but I've always kept it as a security».

Jean-Luc Godard, The Future(s) of Film
Three Interviews 2000/1, página 42
Tradução de John O'Toole

17.5.11

como disse Godard,



«vivre sa vie».

madrugada

Lá estava, como sempre que foi preciso, o nascer do sol ao longo do rio para acompanhar a minha purga. O ritmo das passadas era marcado pelos trocos soltos no bolso esquerdo do impermeável / cling, clang / que me despertavam de alguma forma do torpor mental / cling, clang / em que me deixara cair durante a corrida frenética / cling, clang / imaginando o teu corpo abandonado e desprotegido / cling, clang / esquecido em cima da cama. Procurei-te depois e não estavas. Ou estavas e não quiseste abrir.

dia doze de maio

O dia é o da véspera do culto. A estrada está enfeitada por peregrinos com coletes reflectores que caminham em fila-indiana pelas parcas bermas em direcção ao Santuário. Cruzamo-nos de quando em quando. Abrandam o passo pela curiosidade que a minha tarefa lhes desperta. Talvez estranhem o meu propósito, vendo-me assim —com todo o calor que se faz sentir— camuflado pela capa preta debaixo da câmara de grande-formato. Depois continuam. Eles e eu; cada um à sua promessa, cada um ao seu castigo. Cada um à sua fé.

14.5.11

in the middle (of some) east



Two guys in a van nearby a construction site, Kuwait, 2011
C-Print, 120x95cm, da série 'Middle (of some) East'
Copyright PDB

10.5.11

golpe baixo, treino



Republican militia woman training on the beach outside Barcelona, August 1936
Gerda Taro, Gelatin silver print, International Center of Photography NYC

8.5.11

virtudes

Quando se entra em Virtudes notam-se os homens que andam sem olhar em frente e as mulheres que passam ocultas entre a própria sombra. Não se vêem. Uns e outros, uns aos outros. O desejo de romance existe mas lento e tímido, debaixo das pedras da calçada, colapsado pelo legado da vergonha católica. Virtude, gritou o homem que a fundou. E assim o respeitaram os seus seguidores.

baixos

Ao terminar a conversa a vela está quase no fim. Alguma cera derramou para fora da palmatória criando geografias grotescas no tampo de madeira sebento. A chuva ainda se faz ouvir ao cair no telheiro de zinco num ritmo melódico de noite de Verão. A mulher leva os copos sujos para dentro deixando-nos de mesa vazia e olhos nos olhos. O velho acompanha-me à porta sem sorrisos e despede-se com um aceno seco. Cá fora, outra vez por minha conta, culpado por mexer nos horrores dos outros, arranco de carro com cuidado pelo estreito carreiro. A morte de quem gostamos nunca é fácil, dissera-me ele no dia anterior pelo portão de ferro à chegada do desconhecido.

covões

Dias sombrios, contava o dono da pensão ao final da aldeira, foi o que passaram os que por lá nasceram e morreram. Hoje já não há ninguém: para nascer ou morrer, acrescentou. Desapareceram todos; da sua vista e ainda mais da sua memória. Está sozinho, rodeado por quartos forrados a rendas bafientas, abandonados ao vento que entra pelas vidraças partidas. Um cão acompanha-o, tão velho como ele e igualmente só.

4.5.11

47 ronin (2)



Badlands, (1973)
de Terrence Malick

Já Adorno, antes dos demais, previra o inevitável:
um dia o automóvel tornar-nos-ia em vagabundos sem-abrigo.

47 ronin

A estrada nacional e tudo o que ela representa, tal como tudo o que a define, são há muito um subject da minha pesquisa interdisciplinar. Viajar pelo centro do país —pela estrada nacional— permite-me sempre uma nova perspectiva sobre algumas das coisas que me interessam explorar. «Aponto» agora o que não fotografo, deixando a escrita completar o quadrinómio daquilo que porventura eu possa querer. O samurai errante em mim reclama assim a sua liberdade. Também ele há-de querer algo que eu possa compreender.

1.5.11

o grito antes do silêncio e o silêncio antes do grito

'Ordet', de Carl Th. Dreyer 'Il Grido', de Antonioni